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Emergência Climática: o que precisa entrar na pauta da Educação

14 de maio de 2024|

Sentimos na pele os impactos do novo regime climático. Com isso, ganha relevância a necessidade de se trabalhar a alfabetização/cultura ecológica, considerando as conexões, contexto e interdependências entre todos os seres, entidades e ecossistemas. Nossa utensilagem mental antropocêntrica, calcada na fragmentação e simplificação, fortemente ancorada nos nossos modos de produção, consumo e estilo de vida, demora a entender e pensar saídas. Para além desse contexto social, a escola de educação básica ao lidar com crianças ocupa um lugar sensível de disputas de sentidos sobre parte dessas temáticas. O que é autorizado abordar, como abordar, com quais palavras, quando e quem deve falar, são questões que tensionam o ensino, dada as mais diversas compreensões das diversas famílias que compõem o universo escolar. Enquanto isso, vamos comprometendo a formação da atual e das próximas gerações que viverão de forma intensa as consequências da inércia e da falta de prontidão daqueles que as antecederam. Qual a margem de manobra temos para a atuação? O propósito deste artigo é fazer a articulação entre a denúncia (a partir daquilo que a Ciência e Ambientalistas há décadas vem alertando) e a proposição de oportunidades e alternativas de abordagem para o educador, relacionando-as com a vida, escolhas diárias e com os currículos escolares.

I SOBE O TOM!

A emergência climática em curso, pela sua escala planetária, é infinitamente maior em proporção e poder de destruição que qualquer outra experiência humana que conhecemos. O químico Paul Crutzen (2002) diz que nosso impacto pode ser identificado em escala geológica, daí a proposta do termo Antropoceno para designar que já entramos em outra era geológica. Essa é uma verdade estratigráfica, pois já é possível de se ver a pegada humana nas rochas. A Terra reage por meio dos eventos climáticos extremos. Gaia se contorce expulsando aquilo que a agride. Convivemos diariamente com recordes que nos dão uma noção da gravidade da situação e do comprometimento da capacidade do planeta em se recuperar.

O mês de março de 2024 é o 10º mês consecutivo mais quente já registrado na história, segundo relatório do Observatório Europeu Copernicus (Copernicus, 2024), publicado no dia 09 de abril deste ano. A temperatura média global é a mais alta já registrada, com os últimos 12 meses a situarem-se 1,58 °C acima dos níveis pré-industriais.

Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA está à frente do projeto que monitora as mudanças de temperatura desde 1880. Em um artigo jornalístico publicado na Revista Nature (Schmidt, 2024), ele admitiu:

É humilhante, e um pouco preocupante admitir que nenhum ano confundiu mais as capacidades preditivas dos cientistas do clima do que 2023. (…) Se a anomalia não estabilizar até agosto – uma expectativa razoável baseada em eventos anteriores do El Niño – então o mundo estará em território desconhecido. Isto poderia implicar que o aquecimento do planeta já está a alterar fundamentalmente a forma como o sistema climático funciona, muito mais cedo do que os cientistas previam.

Um movimento liderado por cientistas dos EUA, Austrália e África do Sul, a partir de um Relatório Especial na revista BioScience (Ripple, 2020), logo foi assinado por 14.700 cientistas de 158 países, defendendo a “obrigação moral” de cientistas em “alertar claramente a humanidade sobre qualquer ameaça catastrófica” e apresentar suas pesquisas para demonstrar “que o planeta enfrenta inequivocadamente uma emergência climática”. Quando a ciência usa a expressão inequívoca, falando para leigos, significa que o tema é incontestável, irrefutável. Todas as evidências advindas das mais diferentes áreas do conhecimento apontam para o mesmo lugar.

Parece que estamos anestesiados com tantas notícias, que mais se parecem com as tribulações do Apocalipse. Cada vez mais um novo estímulo precisa ser dado para que saiamos do estado de torpor e inércia. Começamos ouvindo falar de mudanças climáticas, aquecimento global, crise, emergência, colapso e, agora, ebulição climática. Reparem, o tom vai aumentando proporcionalmente à nossa incapacidade como humanidade de ouvir e responder. Subir o tom é uma tentativa dos cientistas, das organizações, dos ativistas e agora das grandes mídias em comunicar, sem rodeios, o que está acontecendo. Trata-se de acordar, pela palavra, aqueles que dormem.

A expressão “mudanças climáticas” perdeu força por ser considerada passiva, meiga demais para aquilo que estamos vivendo. Bate em nossos ouvidos que é papo de climatologista; é a natureza e “eu não tenho nada a ver com isso”, além de que, do lado de fora da minha janela, crianças brincam, as maritacas estão voando, os congressos estão focados na inteligência artificial e, daqui a pouco, vou para um aniversário. Vida que segue. A mensagem é: continue fazendo o que você está fazendo.

Agora, se a sua casa estiver pegando fogo com a sua mãe presa lá dentro, você não irá dizer que está havendo uma mudança da temperatura na sua sala. Você ligará para o Corpo de Bombeiros e esbaforido irá dizer que a sua casa está em chamas. É disso que se trata. Emergência é a sirene do corpo de bombeiros ou do SAMU que toca de forma estridente, furando sinal, passando na frente. Emergência é prioridade máxima e pede ação.

Essa mudança de tom aconteceu com alguns editoriais de jornais, como The Guardian (https://www.theguardian.com/environment/2019/may/17/why-the-guardian-is-changing-the-language-it-uses-about-the-environment) e BBC, (https://www.carbonbrief.org/exclusive-bbc-issues-internal-guidance-on-how-to-report-climate-change/) que em 2019, alteraram o manual de redação e a linha editorial, adotando palavras mais fortes, como forma de assumir e aceitar que estamos diante de um desafio de grandes proporções, que nos afeta em muitíssimos aspectos da vida cotidiana. Dicionários também estão se adequando. O britânico Collins elegeu a expressão “greve climática” e Oxford elegeu “emergência climática” como as palavras do ano de 2019. Essa última significa “uma situação na qual uma ação urgente é exigida para reduzir ou mitigar as mudanças climáticas e evitar um dano potencialmente irreversível ao meio ambiente”.

Vendo toda essa movimentação, precisamos nos perguntar quais as mudanças o campo da educação está efetuando. O que mudou na abordagem, nos currículos, nas formações, nas estruturas físicas das escolas, nos planejamentos dos professores? O que nós, educadores, reles mortais, podemos fazer? Em que estágio estamos?

II Dos gestos solitários às grandes mudanças coletivas.

Essa história de “gigantes Golias”, felizmente, tem muitos “Davis”. São muitos, contudo, farei menção a um exemplo que mais se aproxima da realidade escolar.

Não foram as mudanças nas palavras, que fizeram acordar os líderes mundiais, mas uma única e pequena estudante. Sem cargo, sem poder, sem dinheiro. Aos 8 anos, na escola (veja a importância da escola!), ela ouviu falar do que estava acontecendo no planeta e isso a impactou demais. Sofreu profundamente e se angustiou com tudo isso, mas em 2018, com 15 anos de idade, resolveu fazer greve escolar pelo clima. Sozinha, sentada no chão com o seu cartaz – School Strike for Climate -, nas sextas-feiras, “matava aula” na porta do Parlamento Sueco. Alguém fotografou, postou e essa imagem viralizou. Essa menina é Greta Thunberg. Seu ato individual, persistente e teimoso, chamou a atenção e mais e mais pessoas foram se unindo ao movimento – Fridays for future (sextas-feiras pelo futuro). Um ano depois, em setembro de 2019, uma greve global pelo clima ocorreu em 150 países, com mais de 5 mil protestos.

Uma única pessoa, aqui um educador ou um estudante, por mais frágil que seja dentro de um sistema, é capaz de atuar e mobilizar os demais para irem além. Ninguém deveria pensar que o seu gesto individual não muda nada. Muda sim! É uma pessoa a mais ajudando a criar as condições para que uma nova consciência ecológica e de mentalidade vá se constituindo. Por outro lado, mesmo que uma lei, um governo ou um sistema educacional venham a propor algo, sem que haja o engajamento dos indivíduos, muito pouco iremos avançar. De uma forma ou de outra, o indivíduo tem responsabilidades à medida que toma consciência da situação. Uma escola, uma rede de ensino, um ministro, um secretário da educação ou um diretor escolar, não podem mais se manterem alheios ao que está acontecendo. Estamos falando de décadas de conhecimento científico disponível. Pesa sobre cada um de nós, adultos, uma responsabilidade social e geracional, com quem está nos dias de hoje e com quem virá.

Reconhecemos que os adultos que hoje estão atuando nas escolas, ou estão na condição de pais e mães, e não foram alfabetizados ecologicamente, como então serão alfabetizadores? Podemos pensar que ninguém ensina aquilo que não acredita ou que não entende. Precisamos de estratégias sensíveis que utilizem a arte, imagens, argumentos e informações que nos mobilizem e convençam de que aquilo é urgente, relevante, necessário e imprescindível. Estamos falando de um conteúdo que, para além de definir nosso futuro no planeta, nos interpela, pois mexe com o nosso modo acomodado de viver, com a cultura, a tradição e opera em camadas mais profundas da nossa existência.

Mas, que desafios de grandes proporções a educação é chamada a ajudar a resolver? Qual a nossa contribuição? O que educadores precisam saber, estudar e aprofundar?

III O que não podemos mais ignorar?

Dos dez maiores riscos para a humanidade, nos próximos dez anos, cinco são riscos ambientais, segundo o Relatório de Riscos Globais (2024) desenvolvido pelo Fórum Econômico Mundial de Davos (World Economic Fórum, 2024), que coleta percepções de quase 1.500 especialistas globais. Segundo o relatório, “os riscos ambientais continuam a dominar o cenário de riscos”. Dois terços dos entrevistados classificam o clima extremo como principal risco e com a maior probabilidade de apresentar uma crise material em escala global em 2024, além de ser o segundo risco mais grave no período de dois anos. Os riscos ambientais dominam os quatros principais riscos globais por gravidade em um período de dez anos.

Quando falamos dos impactos dos eventos climáticos extremos é preciso marcar que eles afetarão diretamente os mais pobres e vulneráveis. A escola é atravessada fortemente pelos problemas sociais, políticos, econômicos e agora pelos ambientais. Tudo isso calibrado, para mais ou para menos, dependendo da região onde se mora, da cor da pele, da condição socioeconômica, gênero ou religião. É aqui que nascem expressões como racismo ambiental e injustiça climática, que também precisam ser incorporadas pela educação. Estudo publicado pela WayCarbon, em parceria com a organização Redes da Maré (Waycarbon e Redes da Maré, 2023), afirma que:

São as populações pobres, pretas e que habitam as periferias urbanas, as mais vulneráveis e as mais atingidas pelos extremos climáticos. E após a destruição, são as que mais têm dificuldades de serem reparadas pelo Estado.

De igual modo, o Relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e parceiros (WMO, 2021), intitulado – Estado do Clima na África 2020, indicam que até 2023, as estimativas revelam que, pelo menos 118 milhões de pessoas extremamente pobres no Continente estarão expostas à seca, inundações e calor extremo, o que impedirá o progresso em direção ao fim da pobreza. A injustiça climática se dá nesse caso pelo fato de a África produzir uma fração muito pequena das emissões globais de gases de efeito estufa.

Essa teia repleta de caroços e poucos laços repercutem fortemente nos sistemas de ensino. O sujeito da aprendizagem e da educação de que tanto falamos são meninas e meninos que já chegam até nós marcados por essas duras realidades. Mesmo sendo alguém com origem socioeconômica favorecida e com alto poder de compra, não é desejável que, por essas condições, sejam indiferentes ao que está acontecendo.

Por fim, a complexidade se agrava quando esses eventos são pareados com outros riscos apontados que são: informações incorretas, polarização social e política. Esse dado é o anúncio de possíveis turbulências e que a temática não terá uma entrada tranquila na escola. É necessário o embasamento científico, entendimento da faixa etária a que se destina o conteúdo, boas sequências didáticas e uma apurada pesquisa do material didático a ser ofertado. Trata-se de um conhecimento multidisciplinar e transversal que não se restringe às Ciências da Natureza. Esse será um esforço extra para muitos dos educadores, principalmente para aqueles que se mantiveram alheios até o momento.

IV Conexões presentes e ausentes

A cultura e educação ecológicas têm temas que são mais explorados pelas escolas. De certa forma, estão inscritos na Encíclica Laudato Si (Francisco, 2015):

É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivá-las até dar forma a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias. (p.168, vrs.211)

Não podemos mais ignorar a forte interdependência entre todos esses fatores e variáveis, contudo, o que chega para os estudantes, muitas vezes também não tem contexto e eles não relacionam com a própria vida. Importantes as advertências de Edgar Morin (2002, p.29):

Hoje, a nossa necessidade histórica é de encontrar um método que detecte e não que oculte as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interdependências, as complexidades.

Sendo assim e, com nossa visão mais alargada, traremos dois temas ausentes na pauta da educação. A Ecologia Integral requer um compromisso com a dimensão sagrada da vida, da natureza e do ser humano. Está implícito a vida em suas diferentes formas, ambientes e territórios e da preservação da biodiversidade. Há, contudo, uma dificuldade em encontrar a menção de outras vidas para além dos seres humanos, seja em nossos documentos, currículos ou nas discussões sobre sustentabilidade. O animal aparece sempre como recurso natural renovável. Será que somos os únicos habitantes e interessados na preservação do planeta, e com direitos de existir?

Falamos de biodiversidade e, precisamos falar mesmo, já que a ciência afirma que estamos na 6ª extinção em massa, a ameaça ambiental mais séria à civilização, por já estar em andamento e por ser irreversível. Michael Benton, paleontólogo que estudou a extinção no fim do Permiano, citado no livro – A sexta extinção, de KOLBERT (2015), utiliza uma metáfora para explicar o que é uma extinção em massa. Diz ele: “Durante uma extinção em massa, vários galhos da árvore são cortados, como se ela estivesse sendo atacada por homens brandindo machados” (s/p).

Segundo os pesquisadores, as espécies são elos nos ecossistemas e, à medida que caem, muito provavelmente levarão junto as outras espécies com as quais interagem. Já temos vários alertas de cientistas sobre a extrema urgência de ações globais maciças para salvar os sistemas cruciais de suporte à vida da humanidade.

Se por um lado extinguimos, do outro lado somos bizarros e criamos uma superpopulação artificial de animais para o consumo humano. A população brasileira é de 220,2 milhões de pessoas (dados do dia 24 de abril de 2024) e o Rebanho bovino brasileiro é de 234,4 milhões de animais (IBGE, 2023). Podemos dizer que temos a relação um para um no tocante a um boi para um habitante do Brasil. De qualquer forma, isso só é possível graças à voracidade com que avançamos para cima dos corpos dos animais, para atender as nossas demandas e caprichos ilimitados. Para esses, temos autorização legal, dada por nós mesmos, para avançarmos sobre seus corpos, territórios, ambientes, e, anestesia ética, para separamos os filhotes de suas mães, inseminar anualmente as fêmeas, sufocar ou macerar pintinhos machos que não “prestam” para a indústria do ovo, confinar e reduzir sua locomoção e assim, aumentar a sua produtividade e população. Persistimos, considerando as outras espécies como coisas passíveis da nossa exploração e domínio. Caminhamos para um planeta em que existirá somente nós e os animais que iremos comer. Se é que é sustentável um planeta assim.

Esse contexto nos leva a outras perguntas ignoradas: qual a relação dos sistemas alimentares e a emergência climática? O que seria o tema da nutrição do ponto de vista dos direitos humanos? A produção de alimentos tem relação direta com a degradação ambiental e a perda da biodiversidade, pois essas comprometem a resiliência dos sistemas alimentares.

Estudo inédito publicado pelo Observatório do Clima (2023), calcula em 1,8 bilhão de toneladas a emissão bruta de gases-estufa por sistemas alimentares. Isso representa 74% das emissões de gases de efeito emitidos pelo Brasil. Somente a cadeia da carne emite 1,4 bilhão, mais que o Japão. Em que momento nos perguntamos que cadeia produtiva é essa? Produz o quê? Como são seus processos? Alimenta a quem?

Levantamento feito pelo Observa Infância da Fiocruz (2023) que utilizou dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), demonstra que o Brasil está acima da média global e da América Latina, no tocante ao sobrepeso e obesidade, em crianças menores de 5 anos e adolescentes de 10 a 18 anos. A má alimentação também se apresenta na forma de sobrepeso, sendo um problema da pobreza (compro o que o dinheiro dá e quase sempre o disponível é de má qualidade nutricional) e do nível educacional. A pouca quantidade de nutrientes ou “fome oculta” ou “fome silenciosa”, afeta mundialmente cerca de 2 bilhões de pessoas.

A transição não é somente energética, ela é também alimentar. O que nós ensinamos sobre nutrição e alimentação em nossas escolas? Que modelos reproduzimos? Concordamos que não se deve direcionar as escolhas daquilo que as pessoas irão comer. A responsabilidade da escola é o ensino de qual nutrientes necessitamos para uma nutrição que traga saúde, disposição e vitalidade, e quais são as fontes de cada um deles, seja de origem animal ou vegetal.

V Considerações Finais

Vivenciaremos hoje, e não no futuro, mudanças rápidas nos sistemas de produção e consumo, na forma como lidamos com o solo, geramos energia, nos movemos, produzimos, moramos e, principalmente, como nos alimentamos. A crise climática, com tudo que ela carrega, traz para a cena novos conhecimentos que precisarão ser mobilizados, além de um novo jeito de viver. Projetos Pedagógicos que coloquem a vida em primeiro lugar, além de preparar nossos estudantes para esse mundo é uma questão ética e de honestidade intelectual.

Como esses assuntos podem entrar na pauta da escola? As temáticas são duras e áridas. Precisamos diferenciar o que é conhecimento que o professor precisa ter para dar boas aulas e aquilo que precisa chegar, com as devidas adequações, até a criança de 3 anos ao adolescente de 17. Não podemos receber e jogar sobre elas toda a carga de informação sobre a destruição do planeta, sem que haja um filtro e adequação. Isso é difícil e sério. Imagine uma criança de 8 anos tendo uma aula sobre o degelo do Ártico, a elevação do nível dos oceanos ou sobre outros eventos climáticos extremos. Podemos gerar a “síndrome da angústia ambiental”, expressão que tomo emprestada do livro Educação Ambiental, de Genebaldo Freire Dias. Enquanto concluo essa reflexão, o Brasil assiste atônito à tragédia no Rio Grande do Sul. Não é mais possível esconder essa realidade das crianças. Elas assistem. Elas são vítimas. Ao se depararem diariamente com notícias de agressão aos animais, às florestas e rios, instala-se em seus pensamentos a sensação de indignação e impotência, que ainda não sabem nomear e nem endereçar. Afundam no conteúdo da catástrofe.

Ainda podemos dar essa notícia preparando-as corretamente, com embasamentos científicos sistematizados, de modo a contemplar a maturidade e desenvolvimento. Digo aos educadores que revejam suas metodologias. Crianças precisam de encantamento ao observarem e estudarem os ciclos da natureza, suas estações, a diversidade de plantas e de animais, como vivem, quanto tempo vivem, como cuidam dos seus filhotes, o que cura, o que alimenta ou o que é veneno. Ao apresentar como deveria ser, elas passam a ter referências e memórias afetivas que serão acessadas quando necessário for, estranhar e questionar aquilo que é contrário à promoção da vida. A proposta é despertar nas crianças, jovens e adultos atitudes mentais e amorosas para que elas possam criar comunidades sustentáveis.

Data de autoria: 14 de maio de 2024

Referências

COPERNICUS. Montlhy Climate Bulletin. March 2024 – 10th consecutive record warm month globally. 2024. <https://climate.copernicus.eu/march-2024-10th-consecutive-record-warm-month-globally>. Acesso em: 04/05/2024.

CRUTZEN, P. Geology of mankind. Nature 415, 23. 2002. <https://doi.org/10.1038/415023a>

FIOCRUZ. Obesidade em crianças e jovens cresce no Brasil na pandemia. 2023. https://portal.fiocruz.br/noticia/obesidade-em-criancas-e-jovens-cresce-no-brasil-na-pandemia. Acesso em: 09/05/2024

FRANCISCO, Papa. Laudato Si: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. Brasília: CNBB. 2015.

IBGE. Rebanhos e valor dos principais produtos origem animal foram recordes em 2022. 2023. <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37937-rebanhos-e-valor-dos-principais-produto-de-origem-animal-foram-recordes-em-2022>. Acesso em 07/05/2024

KOLBERT, Elizabeth (2015). A sexta extinção em massa: uma história não natural. Editora Intrínseca Ltda. Edição Digital, 2015.

MORIN, Edgar. O Método 1- A natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002.

OBSERVATÓRIO DO CLIMA. Produção do Clima responde por 74% das emissões do Brasil. 2023. https://www.oc.eco.br/producao-de-comida-responde-por-74-das-emissoes-do-brasil/. Acesso 09/05/2024.

PARLAMENTO EUROPEU. Parlamento europeu declarou emergência climática. 2019. <https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20191121IPR67110/parlamento-europeu-declara-emergencia-climatica>. Acesso 01/05/2024.

RIPPLE, William J., Christopher Wolf, Thomas M Newsome, Phoebe Barnard, William R Moomaw. World Scientists’ Warning of a Climate Emergency. BioScience 70, 1, 8-12. 2020. <https://doi.org/10.1093/biosci/biz088>. Acesso: 07/04/2024

SCHMIDT, G. (2024). Climate models can’t explain 2023’s huge heat anomaly – we could be in uncharted territory. Nature, 627, 467. 2024. <https://www.nature.com/articles/d41586-024-00816-z>. Acesso: 04/05/2024.

WAYCARBON, REDES DA MARÉ. Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas do Conjunto de Favelas da Maré. 2023 <https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/Analise_de_Risco_WayCarbon.pdf> . Acesso: 30/04/2024.

World Economic Forum. Global Risks Report 2024. <https://www.weforum.org/publications/global-risks-report-2024/> Acesso 08/04/2024.

WMO. State of the Climate in Africa 2020. 2021. <https://library.wmo.int/idurl/4/57682>. Acesso 07/05/2024.

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Especialista no Ensino da Educação Física (PUC-Minas) e graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais . Atualmente é diretora de unidade – Colégio Santo Agostinho – Contagem.

E se fosse eu?

17 de janeiro de 2022|

E se fosse eu, o algoz!

Frederick Douglas nasceu escravizado em Maryland – EUA. Desde criança percebeu que as crianças brancas podiam contar suas idades e irem para a escola. Não conseguia entender por que ele era privado dos mesmos privilégios e nem ao menos podia perguntar. Por estimativa, por algo que ouviu, acreditava ter nascido em 1818. Conseguiu fugir na terceira tentativa. Ainda seriam necessários mais 27 anos até a assinatura da abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, e mais de cem anos de espera e de restrições aos plenos direitos.

Quando terminei de ler a autobiografia de Frederick, comentei alguns trechos com pessoas que estavam próximas. As experiências narradas, em primeira pessoa, têm vida, sentimento e a dor daquele que viveu, daí serem bem impactantes. Todos que ouviram concordaram: que absurdo! Contudo, um desses interlocutores, lançou uma pergunta: já pararam para pensar que é bem provável que, se vivêssemos nesse tempo, nós poderíamos ser um desses escravizadores e consideraríamos tudo dentro da normalidade?

De fato, é bem possível! A consciência contrária à escravidão é recente e só foi possível pois muitos daqueles feitos escravos, inconformados, resistiram e lutaram pela liberdade. Junto a eles, foi preciso também a coragem dos abolicionistas, que manifestavam de diversas formas serem contrários àquele estado de coisas. Para esses, também havia o risco de denúncia e terríveis consequências, afinal, se contrapor ao sistema escravagista era confrontar o pacto selado entre as instituições jurídicas, políticas, religiosas e o miúdo da vida cotidiana.

Se hoje nos causam estranhamento os relatos de Frederick, é graças aos que, naquele presente hostil, sonharam e anunciaram um futuro mais equânime e justo. O grande valor e força dessas pessoas, escravizados e abolicionistas, advém do fato de estranharem o sistema, quando tudo apontava para a sua naturalização e normalização. Hoje, apesar da abolição, o racismo persiste e continua restringindo, por meio dos seus inúmeros mecanismos, o acesso à cidadania plena aos jovens negros e pobres. A história de Frederick não acabou, assim como não acabou a necessidade de identificarmos e denunciarmos esses mesmos padrões de exploração em nome de uma superioridade ou estabilidade seja ela de qual campo vier.

O que do presente será contado no futuro e que causará igual espanto? Quem somos nós na perpetuação de sistemas que roubam a vida, a liberdade e a integridade física, daqueles seres que querem a vida, a liberdade e o próprio bem-estar? Quais leis, práticas e costumes, naturalizam a dor, o sofrimento? Quais políticas limitam o acesso a uma cidadania plena a todos e todas? Quais práticas, modo de viver e consumir que favorecem a destruição dos ecossistemas? São muitas e muitas perguntas. A história continua.

Data de autoria: 10 de janeiro de 2022

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Especialista no Ensino da Educação Física (PUC-Minas) e graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais . Atualmente é diretora de unidade – Colégio Santo Agostinho – Contagem.

Despertar

1 de novembro de 2021|

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Especialista no Ensino da Educação Física (PUC-Minas) e graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais . Atualmente é diretora de unidade – Colégio Santo Agostinho – Contagem.

Me tornei vegana há 16 anos, quando o meu raio de compaixão alcançou tardiamente os animais. Não mudei de uma hora para outra, mas passei por um período de transição que durou três anos. O termo vegan foi utilizado pela primeira vez em 1944 por Donald Watson, e se refere a um modo de vida que busca excluir – na medida do possível e praticável – todas as formas de exploração e crueldade com os animais para qualquer propósito. Esse é o princípio e que, por exclusão, diz o que não é veganismo: uma organização, uma nova religião, novos mandamentos; um novo CNPJ com estatuto, regimento e líderes supremos.

Com base nesse princípio dei início a uma instigante despertar da minha própria vida. Desse processo de mudança – que, diga-se de passagem, é pessoal e intransferível – destaco cinco elementos.

Primeiro, foi como se tivesse mudado de óculos, agora com lentes potentes que iluminaram a existência e a realidade dos animais não humanos que até então ignorava ou desconhecia. Segundo, veio junto com as novas lentes, novos ouvidos que me permitiram discernir sons e grunhidos de gritos de socorro e lamentos. Terceiro, minha mentalidade foi tomando nova configuração, pois a ética passou a questionar a minha própria moral. Um quarto elemento foi que reaprendi a comer, reeduquei o meu paladar, diversifiquei as cores e sabores das minhas refeições. Sempre cozinhei, mas foi preciso abandonar meus livros de receitas e reescrever novos. Testei, errei, mas também aprimorei outras tantas. Gostamos daquilo que já conhecemos. Apesar da plasticidade de nosso cérebro, os neurônios tendem a refinar caminhos já escolhidos. É mais econômico. Socialmente é assim que funciona também. É preciso vontade para pegar novos caminhos.

Por último, nunca fui tão questionada. Quanto mais era bombardeada com perguntas, mais eu lia e me interessava pelo assunto. Quem quer fazer esse percurso precisará lidar com essas tensões, que são positivas e nos mobilizam para o estressar os fundamentos de nossas convicções. Se no seu convívio próximo tem pessoas indo nessa direção, não as tenha como uma ameaça, nem as desmobilizem. Aproxime-se. Sou adepta de atrair e despertar a curiosidade sincera para o princípio da abolição animal, movimento que só fará bem para as pessoas, para o planeta e para os animais, afinal, “eu não preciso e eles não merecem”!

Natureza jurídica dos animais, um comentário aos PLs que tramitam na Câmara de Deputados

20 de outubro de 2021|

Edna Cardozo Dias
Edna Cardozo Dias
Bacharel em Direito pela PUC – Faculdade Mineira de Direito – Belo Horizonte.
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (Primeira tese no Brasil, na área do Direito, sobre direito dos animais- 2000).
Especializada em Criminologia pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais – Belo Horizonte.
Pós graduada em Direito Público pela Fundação Educacional Monsenhor Messias, Faculdade de Direito de Sete Lagoas – MG
É autora da primeira tese de doutorado sobre direito dos animais no Brasil, defendida junto à Faculdade de Direito da UFMG, intitulada “A tutela jurídica dos animais” (1ª edição 2000, 2ª edição atualizada 2018), levando ao mundo acadêmico a primeira semente para a formação de uma teoria dos direitos dos animais.
Foi também a primeira a primeira jurista a lecionar no Brasil a disciplina sobre Direito dos animais, junto à PUC/MG, em 2001.
Foi a primeira coordenadora de Defesa dos Animais, no município de Belo Horizonte, em 2016.
Autora dos livros “SOS ANIMAL” (1983 – Esgotado), “O Liberticídio dos Animais” (1997) e “Crimes Ambientais” (1998 – Esgotado), “A tutela jurídica dos animais” (1ª edição 2000 -, 2ª edição 2018, Editora Amazon.com), e “Manual de Direito Ambiental” (2003 – Esgotado) Editora Mandamentos – BH). Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito, Editor Fórum (2013). Advocacia Animalista na Prática (2021). Viaje comigo pelo Brasil e pelo Mundo (2020)
Foi conselheira seccional da OAB/MG (2013-2015 – 2016/2018).
Presidente fundadora da Comissão dos Direitos dos Animais da OAB/MG – (2013/2018), Presidente fundadora da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/MG. (2006/2013). Membro suplente do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, representante das ONGs da região sudeste, por um mandato. Membro da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de Minas Gerais (1993/1994 e 2001/2003). Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica em 2001. Membro da Comissão Extraordinária de Defesa e dos Direitos dos Animais do Conselho Federal da OAB (2015 e mandato 2019/ 2021).
Presidente fundadora da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal (1983/2016), Vice-Presidente para as Américas da Organisation Internacionale pour la Protection des Animaux, com sede na Suíça. Presidente do Instituto Abolicionista Animal – IAA (2016-2018)
Deu início à campanha que redundou na criminalização dos maus tratos aos animais em 1984, o que culminou no artigo 32 da Lei 9.605/1998. Atuou na aprovação do capítulo do meio ambiente da Constituição Federal de 1988 e foi a representante das ONGs de proteção aos animais na audiência pública realizada em 05/06/1988 na Câmara dos Deputados, em que foi entregue o capítulo do meio ambiente ao Senador relator. Vem trabalhando para alterar o Código Civil brasileiro a fim de mudar o status jurídico dos animais, para que deixem de ser “coisas”.

As relações jurídicas dos homens com os homens, dos homens com a sociedade e o meio ambiente são regidas por leis, que pretendem proteger a vida e os bens materiais e imateriais. O nosso Código Civil brasileiro só prevê dois regimes para regulamentar as relações jurídicas, o de pessoas e o de bens. Não prevê uma categoria de direitos atinentes à tutela do animal como ser vivo e essencial à sua dignidade, como já acontece em legislação de países europeus.

Não sendo reconhecidos como pessoas os animais estão regidos pelo regime jurídico de bens, sejam silvestres, exóticos ou domésticos. Enquanto os animais silvestres são considerados bens de uso comum do povo e bens públicos pela Constituição da República os domésticos, de acordo com o Código Civil são considerados bens móveis/coisas. Os animais silvestres estão equiparados a rios, mares e praças. E os domésticos e exóticos a mesas, cadeiras e outros bens móveis.

Vários países europeus avançaram em sua legislação e já alteraram o seu Código Civil para alterar o status jurídico dos animais.

Os países pioneiros na alteração da natureza jurídica dos animais são a Suíça (desde 2002), a Alemanha (desde 1990), a Áustria (desde 1988) e a França (desde janeiro de 2015). Os três primeiros fazem constar de seu Código Civil que os animais não são coisas ou objetos, só se aplica o regime jurídico de bens quando não houver leis específicas. O Código Civil francês reconhece os animais como seres sensíveis, mas admite aplicação do regime jurídico de bens se não houver lei específica dispondo em contrário. Em Portugal, a Lei n.º 8/2017, de 3 de março estabelece um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil e o Código Penal.

Em 2015 foi proposto pelo Senador Antônio Augusto Anastasia o PLs 351/ 2015 que propôs pequena emenda ao Código Civil brasileiro criando um parágrafo único em que passaria a constar que “os animais não serão considerados “coisas”. Devem ser protegidos por leis especiais e serão regidos pelas leis gerais de bens quando não houver leis específicas.

Em sua justificativa o PLs 351/2015 optou pelo modelo alemão partindo da premissa de que no Brasil, juridicamente, “bem” está ligado à ideia de direitos, sem necessariamente caráter econômico, ao passo que “coisa” está diretamente ligada à ideia de utilidade patrimonial.

O PLs 351 transformou-se no PL 3670/2015 na Câmara de Deputados e foi aprovado por unanimidade na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento sustentável, em 07/12/2017, com parecer do Deputado Ricardo Trípoli.

Em 08/08/2017 foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo como relator o Deputado Rodrigo Castro, em decisão terminativa. Entretanto, o Deputado Valdir Colato (que não se reelegeu) entrou com recurso contra a decisão terminativa e o PL aguarda votação em reunião plenária. O PL não foi arquivado por ter sido aprovado em duas comissões e qualquer deputado pode pedir vista e levar a plenário.

Outro projeto mais ousado foi apresentado pelo deputado Ricardo Izar (PL 6.799/ 2013), que dispõe que “Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”.

Ao ser encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, em 03/02/2016, foi designada relatora a deputada Soraya Santos, que concluiu pela constitucionalidade do referido PL, porém entendeu que a alteração deveria ser inserida na Lei 9.605/98 (Lei de crimes ambientais) e não no Código Civil como proposto. Além disso, o projeto foi alterado no Senado em 2019. Os senadores incluíram emenda estabelecendo que a medida não se aplica a animais usados na agropecuária, em pesquisas científicas e em manifestações culturais.

O texto aguarda agora votação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara, que realizou audiência pública neste outubro de 2021, a pedido do autor do projeto.

Apesar da Constituição da República garantir aos animais direitos fundamentais e a Lei 5.197/1967 regulamentar a proteção dos animais silvestres, falando ambas de conservação das espécies e dos ecossistemas, os animais como indivíduos atualmente só estão protegidos pela lei penal. O direito de propriedade só é limitado, atualmente, pelo Direito Penal que protege os animais dos atos de maus tratos e pelas leis de bem-estar.

De forma que o reconhecimento legal de que os animais são seres sensíveis dotados de sensibilidade, e/ou o reconhecimento expresso na lei de que não coisas viria, sem dúvida, dinamizar a eficácia das leis de proteção aos animais.

Em minha opinião eu prefiro o PL 3670/2015 (PLs 351/15- Senador Anastasia) uma vez que segue os moldes de outros países e, porque a diferença entre coisa e bem já está solidificada na doutrina jurídica. Já a conceituação de categoria sui generis não existe. Além do mais a emenda do Senado ao PL 6054/19 (Deputado Izar) é indiscutivelmente nefasta à proteção de vários animais, podendo inclusive suscitar dúvidas na aplicação da lei. O referido PL acaba por “coisificar” alguns animais ao permitir o uso e a disposição de animais na experimentação animal, na agropecuária e nas manifestações culturais e ao retirar-lhes o direito de acesso ao Judiciário.

O PL 6054, se aprovado, enfraquecerá as leis de proteção aos animais e o dispositivo constitucional que concede aos animais direitos fundamentais, tornando-os sujeitos de direitos.

Que nosso Código Civil deve ser modernizado é indiscutível, mas a meu ver, devemos adotar a emenda mais simples que expresse na lei que “os animais não são coisas”. Dessa forma declaro meu apoio ao PL 3670/2015.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Supremo Tribunal Federal reconhece o Direito à Vida de galos apreendidos

7 de outubro de 2021|

Samylla Mól
Samylla Mól
Mestra em Direito Ambiental. Advogada. Historiadora
Consultora em Direito Animal
Membro do Instituto Abolicionista Animal
Membro da Associação Latino Americana de Direito Animal
Professora, escritora e membro da Academia Marianense de Letras

Embora cruéis com animais e, por isso, vedadas pelo Constituição Federal, as rinhas de galos ainda são uma prática comum no Brasil. Os galos explorados na atividade passam por condicionamentos físico e emocional que configuram maus tratos e são, portanto, considerados crimes.

Ocorre que, quando são feitas apreensões desses animais vem à tona o problema da destinação deles. Para onde levar galos treinados para brigar? Como transportá-los sem que eles se digladiem no caminho? Isso é, de fato, um problema para a autoridade que promover a apreensão.

Por outro lado, insta salientar que a Constituição Federal atribui ao Poder Público o dever de tutelar os animais e a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) cuidou de detalhar como deve ser feita a destinação deles, quando apreendidos.

Neste sentido, o art. 25 da Lei 9605/98 determina que constatados os maus tratos, em se tratando de animais domésticos, cumpre a autoridade que lavrar o Auto de Infração e/ou Boletim de Ocorrência, apreendê-los e encaminhá-los para instituições que os acolham e tratem. O parágrafo segundo do dispositivo assegura, também, que no interregno entre a apreensão e a destinação às essas instituições , cumprirá ao órgão autuante zelar pelo adequado acondicionamento, transporte e bem-estar dos animais.

Entretanto, a hermenêutica do art.25 da Lei 9605/98 foi, por vezes, incompreendida na prática dos julgamentos cotidianos e, diante da existência de decisões judiciais que autorizaram o abate de galos apreendidos e não a destinação definida em lei , o STF foi chamado a se pronunciar, em sede de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 640).

Dentre as decisões que embasaram a propositura de tal ADPF, está a proferida na Comarca de Magalhães, na Bahia, em cujo bojo o Juiz de Direito acata o pedido do Ministério Público para abater 90 (noventa) galos apreendidos em situação de maus tratos. Ao acatar o pedido do parquet, o juiz afirma que a destinação dos animais às entidades de proteção aos animais restou inviabilizada pelo fato deles serem agressivos uns com os outros.

Outra decisão emblemática, analisada na ADPF foi a proferida pela juíza da Comarca de Patrocínio, em Minas Gerais. No bojo do processo, o Promotor de Justiça requereu autorização para “abate de descarte” dos animais quando o consumo humano dos mesmos não fosse recomendado por médico veterinário. A juíza acatou esse pedido da promotoria.

Em decisão proferida em 10 de setembro de 2021, o relator, Ministro Gilmar Mendes, analisou as decisões acima mencionadas e o pedido feito na ADPF ,teceu uma série de considerações acerca da proteção jurídica aos animais no Brasil, da consciência e sensibilidade deles e acatou o pedido para declarar a ilegitimidade das interpretações dos arts. 25, parágrafos 1 e 2 da Lei 9605/98 que autorizem o abate de animais apreendidos em situação de maus tratos.

O ministro foi enfático ao argumentar que não justifica tutelar os galos contra os maus tratos que lhes são impingidos pelos seus criadores e pelos provedores de rinhas para, em seguida, decretar-lhes a morte. Com essa decisão, pode-se afirmar que o STF reconheceu o Direito à Vida dos galos apreendidos em situação de rinha e maus tratos.

Desta feita, uma vez apreendidos, os galos explorados para rinha passam a ter reconhecido direito à sobrevida digna, não podendo serem destinados para o abate, cumprindo ao Poder Público assegurar esse direito.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Hai Kais Animalistas

26 de julho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

Sacrifício Ritual de Animais em Cultos de Religiões de Matriz Africana (RE 494.601-RS) – um retrocesso para o Direito Animal?

9 de julho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

A tendência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, favorável a limitar atividades humanas que usem animais de forma cruel, alegadas como culturais,[1] sofreu uma aparente interrupção, com um precedente de 2019, pelo qual se fixou tese no sentido que “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.[2]

Essa interrupção, no entanto, é aparente, porque o caso submetido à jurisdição constitucional não foi resolvido à luz da regra da proibição da crueldade contra animais, incluída no art. 225, § 1º, VII da Constituição.[3]

Não se trata, portanto, de um precedente de Direito Animal.

O recurso extraordinário foi apresentado pelo Ministério Público Estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que declarou constitucional a Lei Estadual 12.131/2004, a qual acrescentou o parágrafo único ao art. 2º da Lei Estadual 11.915/2003, com a seguinte redação: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.” As vedações do art. 2º dizem respeito a maus-tratos contra animais.

Acontece que, como consta do voto do Ministro Fachin, o recurso do Ministério Público combateu vícios de duas ordens:

(1) inconstitucionalidade formal, decorrente da ofensa ao art. 22, I, da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal, porquanto não poderia o Estado criar causa nova de exclusão de ilicitude, suprimindo o abate de animais em rituais religiosos da incidência do tipo penal do art. 32 da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais);[4]

(2) inconstitucionalidade material, ante a violação do art. 19, I, da Constituição,[5] visto que a norma teria excepcionado apenas os cultos de matriz africana.

Como se pode ver, o Ministério Público gaúcho não se dispôs a discutir, por meio do apelo extraordinário, a proibição do sacrifício ritual à luz da regra disposta na parte final do art. 225, § 1º, VII, da Constituição (vedação da crueldade contra animais). Ainda que os Ministros tenham debatido se ocorre ou não crueldade no sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana,[6] essa não foi a ratio decidendi do julgamento.

Em outras palavras, o debate sobre crueldade contra animais nos sacrifícios rituais configurou obiter dictum, uma vez que essa questão era dispensável à solução do caso submetido à Corte Suprema, considerando o teor as razões recursais.

O precedente fundou-se, determinantemente, pela:

(1) natureza administrativa da lei inquinada, o que lhe coloca sob o albergue da competência legislativa concorrente, nos termos do art. 24, VI, da Constituição; e pela:

(2) proteção especial da liberdade de culto das religiões de matriz africana, dado que, conforme palavras do Ministro Barroso, “tais religiões é que têm sido, historicamente, vítimas de intolerância, de discriminação e de preconceito.”

Ainda que o resultado não motive comemorações para a causa animalista,[7] pode-se concluir que esse precedente não abalou a linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em matéria de Direito Animal e da aplicação da regra constitucional da proibição da crueldade.

Não parece ser um ponto fora da curva

O julgamento simplesmente não se pautou nessa regra, discutida, en passant, como obter dictum, pelo que não se descarta a possibilidade do sacrifício religioso de animais voltar a ser debatido na Supremo Corte, agora sob a ótica dessa regra e do princípio constitucional da dignidade animal.[8]

[1]     Proibição da farra do boi em Santa Catarina: STF, 2ª Turma, RE 153.531-SC, Relator Ministro FRANCISCO REZEK, acórdão lavrado pelo Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 03/6/1997, publicado em 13/3/1998; proibição das rinhais de galo: STF, Pleno, ADIn 2514-7/SC, Relator Ministro EROS GRAU, julgado em 29/6/2005, publicado em 09/12/2005; STF, Pleno, ADIn 3776-5/RN, Relator Ministro CÉZAR PELUSO, julgado em 14/6/2007, publicado em 29/6/2007; STF, Pleno, ADIn 1856/RJ, Relator Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 26/5/2011, publicado em 14/10/2011; proibição da vaquejada:  STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[2]     STF, Pleno, RE 494.601-RS, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Relator para acórdão Ministro EDSON FACHIN, julgado em 28/3/2019, publicado em 19/11/2019.

[3]     Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifos nossos).

[4]     Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. […]

[5]     Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […].

[6]     O Ministro Alexandre de Moraes negou, peremptoriamente, ocorrência de crueldade nesses rituais religiosos e o Ministro Marco Aurélio condicionou o sacrifício do animal ao consumo posterior da carne.

[7]     BRAZ, Laura Cecília Fagundes dos Santos; BRAZ, Helena Maria Fagundes dos Santos Mota; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Sacrifício de animais em cerimônias religiosas na pauta do STF: direito à liberdade religiosa sobreposto ao direito à vida animal não humana. Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, v. 14, n. 3, set./dez. 2019. DOI: 10.5902/1981369432093.

[8]     MAROTTA, Clarice Gomes. Princípio da dignidade dos animais: reconhecimento jurídico e aplicação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998)

15 de junho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

[1] 

  1. O crime de maus-tratos contra animais após a Lei “Sansão”

O crime de maus-tratos contra animais (rectius: crime contra a dignidade animal) está previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, e recebeu um parágrafo 1º-A pela Lei 14.064/2020.

A redação atual do dispositivo é a seguinte, com destaque nosso:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

A Lei 14.064/2020 foi batizada como “Lei Sansão” (em homenagem ao cão vítima de tortura e amputação das patas traseiras) e resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do Deputado Federal Fred Costa (PATRIOTAS/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.[2]

  1. O tipo qualificado do crime contra cães e gatos

 O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.

No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, “em estabelecimento de segurança máxima ou média” (art. 33, § 1º, I, CP).

Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Ademais, também não se trata de infração de médio potencial ofensivo, pois deixa de ser compatível com a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), em razão de sua pena mínima ser superior a um ano.

Trata-se, portanto, de infração de máximo potencial ofensivo.

Em consequência:

(1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (art. 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (art. 159, CPP);

(2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (art. 313, I, CPP), após audiência de custódia;

(3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (art. 322, CPP);

(4) descabe transação penal (art. 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (art. 394, § 1º, I, CPP);

(5) também não cabe, como já dito, a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.

  1. A violência como elementar do tipo no crime de maus-tratos contra animais

Ao contrário do que se costuma dizer, não é o meio ambiente, a natureza, o equilíbrio ecológico ou a biodiversidade os bens diretamente protegidos pela norma penal contida no art. 32 da Lei 9.605/1998. Muito menos algo como o “sentimento de solidariedade para com os animais”. A criminalização das condutas apontadas no tipo, simples ou qualificado, decorre da regra da proibição da crueldade contra animais, estabelecida no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, da qual se revelam o valor intrínseco de todo animal e a dignidade animal individual, independentemente das suas funções ecológicas.[3]

Destarte, vislumbra-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime. Apenas como sujeito passivo mediato do crime poder-se-ia cogitar o meio ambiente, bem como seus consectários.

Considerando isso, deve-se perceber que todo crime tipificado no art. 32 da Lei  9.605/1998 é doloso e violento. A violência intencional, nesse caso, é dirigida ao animal vítima do crime. Não há abuso, maltratamento, ferimento, mutilação ou experimentação dolorosa indevida sem violência contra o animal.

A violência contra os animais não é limitada ao sofrimento físico diretamente infligido, como no caso do ferir ou do mutilar, constantes do tipo penal. Os maus-tratos, nas suas diferentes caracterizações,[4] o abuso e a utilização indevida em experimentos científicos dolorosos também são condutas humanas violentas contra animais, descritas no tipo, nas quais o sofrimento animal pode ser tanto físico, como psíquico.[5]

Vale sempre relembrar que os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais.[6]

  1. O acordo de não persecução penal após a Lei 13.964/2019

O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor.[7]

A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.

Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no art. 28-A do Código de Processo Penal.

Da leitura do referido art. 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (grifo nosso); (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O § 2º do art. 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.

  1. Da impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos

É evidente que, no tipo simples do crime de maus-tratos contra animais são cabíveis diversas medidas despenalizadoras, como a transação penal, dado que, por enquanto, se trata de crime de menor potencial ofensivo, submetido às branduras dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Descabe o acordo de não persecução penal nesse caso (art. 28-A, § 2º, I, CPP), até por ser desnecessário.

Mas, em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do art. 32, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado se tratar de crime de máximo potencial ofensivo.

Ocorre que também se deve concluir não ser cabível o acordo de não persecução penal para esse tipo qualificado de crime contra animais.

Isso porque, como visto, um dos requisitos obrigatórios para permitir o acordo e impedir a persecução penal é que o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça. Leia-se bem o caput do art. 28-A do CPP: não se fala em violência ou grave ameaça à pessoa, como que para se referir tão somente à violência ou grave ameça a seres humanos, os quais são pessoas naturais.

Quando a lei penal quer se referir, especialmente, à violência contra pessoa, o faz expressamente, como no art. 318-A, I, do Código de Processo Penal, no art. 112 da Lei de Execuções Penais e, dentre outros, nos arts. 16; 44, I; 71, par. ún.; 83, par. ún. e 157 do Código Penal.

Isso não quer dizer que nas hipóteses em que a lei penal fala em violência, sem se referir à pessoa, não esteja se referindo à violência contra o ser humano. Na maioria das vezes efetivamente está implícita essa referência, especialmente quando há  menção a alguém (v. g., art. 146, 158 e 197 do Código Penal).

O que se chamar a atenção é que nas hipóteses de violência em que não há a referência expressa à pessoa, é possível, especialmente em relação às normas processuais penais (normas não incriminadoras), proceder a uma interpretação extensiva (art. 3º, CPP), para abranger todas as possibilidades de violência contra seres sencientes, como os cães e gatos, não se limitando aos seres humanos.

Esse aporte interpretativo pós-humanista para o Direito Processual Penal é adequado e razoável, considerando a crescente sensibilização social para o tema da violência contra animais, do que é demonstração a própria Lei Sansão.

É por essa razão que não se deve admitir o acordo de não persecução penal em relação ao crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos, considerando que a violência contra os animais é ínsita ao tipo penal. O art. 28-A do CPP não se refere à violência ou grave ameaça à pessoa, mas, de forma mais ampla, à violência ou grave ameaça em geral, o que deve abranger as práticas violentas dirigidas a qualquer ser vivo senciente (especialmente cães e gatos), dada a existência de tipos penais – como o do art. 32 – que protegem a dignidade para além dos seres humanos.

Consequentemente, o acordo de não persecução penal que envolva o crime do art. 32, § 1º-A, da Lei 9.605/1998 não deve ser homologado pelo juiz criminal, dado envolver infração penal com violência a ser senciente (cães ou gatos), aplicando-se o disposto no § 7º do art. 28-A do CPP.

Contra a decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, cabe recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, XXV, do CPP, com redação dada pela Lei 13.964/2019.

Por fim, seria importante abrir à vítima a possibilidade de controle sobre o acordo de não persecução penal, postulando a sua revisão pelas instâncias superiores do próprio Ministério Público, na forma preconizada pelo art. 28, § 1º, do CPP, com a redação dada pela Lei 13.964/2019.[8] Com o mesmo propósito, poder-se-ia cogitar de uma apelação supletiva para o ofendido contra a decisão que homologar o acordo, dado se tratar de decisão definitiva (art. 593, II, CPP).

[1]           Artigo escrito com a colaboração de Lucas Eduardo de Lara Ataide, advogado e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal, presidido pelo Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos.

[2]           Para uma visão mais completa sobre o tema, consultar, ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; ATAIDE, Lucas Eduardo de Lara. Comentários sobre o crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Jus Navigandi, Teresina, nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86787/comentarios-sobre-o-crime-qualificado-de-maus-tratos-contra-caes-e-gatos-art-32-1-a-lei-9-605-1998#:~:text=Al%C3%A9m%20da%20pena%20privativa%20de,pena%20restritiva%20de%20direitos%20(art. Acesso em: 27 jan. 2021.

[3]           Cf. STF, Pleno, ADI 4983, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[4]           Nas hipóteses catalogadas, por exemplo, no art. 3º do Decreto 24.645/1934 ou no art. 5º da Resolução CFMV n.º 1.236/2018.

[5]           A violência, de fato, há muito não se concebe como restrita ao fenômeno da agressão física. Veja-se, apenas a título de ilustração contemporânea, o quadro de violências possíveis contra a mulher, no âmbito da violência doméstica e familiar, preconizado pelo art. 7º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

[6]           Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/06/declaracao-de-cambridge-portugues.pdf. Acesso em: 14 jul. 2020.

[7]           Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, HC 636.279/SP, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK, julgado em 09/03/2021, publicado em 23/03/2021.

[8]           Sobre a eficácia desse novo dispositivo, ver: STF, Decisão Monocrática, ADI/MC 6288, 6299, 6300 e 6305/DF, Min. LUIZ FUX, 22/01/2020. Sobre o tema do novo arquivamento do inquérito policial, consultar, ARENHART, Bianca Geórgia Cruz. Uma leitura constitucional do novo modelo de arquivamento do inquérito policial. Consultor Jurídico, 2 abr. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-02/arenhart-modelo-arquivamento-inquerito-policial. Acesso em: 12 jun. 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Capacidade processual dos animais e o Projeto de Lei 145/2021

27 de maio de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.
  1. Introdução

 Trata-se do Projeto de Lei (PL) n.º 145/2021, de autoria do Deputado Federal Eduardo Costa (PTB/PA), protocolado na Câmara dos Deputados no dia 3 de fevereiro de 2021, o qual “Disciplina a capacidade de ser parte dos animais não-humanos em processos judiciais e inclui o inciso XII ao art. 75 da Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, para determinar quem poderá representar animais em juízo.”

A redação do projeto é a seguinte:

Art. 1º. Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.

Parágrafo único. A tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva.

Art. 2º. O art. 75 da Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil passa a vigorar acrescido do inciso XII, com a seguinte redação:

“Art. 75………………………………………………………..

XII – os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.”

Art. 3º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Art. 4º. Revogam-se as disposições em contrário.

 O anteprojeto acolhido pelo Deputado Eduardo Costa, que resultou no PL 145/2021 da Câmara, foi por nós redigido, no âmbito do Programa de Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), vinculado ao Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Faculdade de Direito, e do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do Programa de Pós-Graduação em Direito da mesma Universidade, contando com a imprescindível colaboração da Dr.ª Maria José Vieira de Carvalho Cunha, do Ministério Público do Estado do Pará, e do Dr. Anderson Furlan Freire da Silva, Juiz Federal da 4ª Região, ambos com destacada atuação nas áreas do Direito Ambiental e do Direito Animal.

  1. Capacidade de ser parte como pressuposto processual

A capacidade de ser parte,[1] entendida como “a capacidade, ativa ou passiva, de ser sujeito da relação jurídica processual”[2], considerada pressuposto processual de existência,[3] não ocupa grande parte das preocupações dos processualistas, que têm aceitado essa categoria, sem maiores indagações críticas sobre o seu fundamento normativo,[4] a sua função na teoria processual e a sua aplicação pragmática.

Talvez essa desimportância da categoria seja resultado da sua parca manifestação empírica, como um “falso-problema”, existente apenas para resolver os casos de demandas formuladas por ou em face de pessoa já falecida.[5]

Mas a capacidade de ser parte renasce em relevância a partir do fenômeno da judicialização terciária do Direito Animal,[6] ou seja, da existência de animais demandando em juízo, em nome próprio, seus direitos subjetivos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.[7]

A questão que aparece, em primeiro lugar, nessas novas demandas, é exatamente a capacidade de ser parte dos animais: pode um animal, vítima de violência ou de maus-tratos, postular, em nome próprio (devidamente representado), uma indenização contra o agressor?

As primeiras respostas do Poder Judiciário têm sido negativas,[8] ao argumentando central de que o CPC não contempla a capacidade de ser parte dos animais.[9]

  1. A capacidade de ser parte dos animais no direito brasileiro

Se o ordenamento jurídico brasileiro reconhece direitos subjetivos para animais – sobretudo individuais, diga-se logo[10] – não parece possível sonegar-lhes acesso à jurisdição pelo fundamento da incapacidade de ser parte.

A Constituição Federal garante a todos – independentemente de raça, sexo, espécie[11] ou outra discriminação negativa – o exercício de ação em caso de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, Constituição). Aliás, bem compreendida, “A capacidade de ser parte decorre da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário, prevista no inciso XXXV do art. 5º da CF/88”[12], não se podendo “dar à lei interpretação que impeça ou dificulte o exercício da garantia constitucional do direito de ação”[13], de modo que não apenas as pessoas, ou entes dotados de personalidade jurídica, têm direito de ação.[14]

Quem tem direitos tem direito constitucional de ir a juízo reivindicá-los!

Evidentemente, a inexorável capacidade de ser parte dos animais não se confunde com a sua capacidade de ir a juízo. Tomando-os por absolutamente incapazes, dado que não possuem meios para exercer diretamente qualquer ato da vida civil, os animais somente poderão ser admitidos em juízo mediante representação.

A representação dos animais em juízo, até o momento, tem se dado na forma do Decreto 24.645/1934, o qual, no seu art. 2º, § 3º, estabelece que “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.”[15]

  1. O Projeto de Lei 145/2021

Conforme o art. 1º, caput, do projeto, “Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.”

Não obstante seja possível afirmar que, por derivação da garantia constitucional do acesso à justiça, os animais, enquanto sujeitos de direitos, ostentam capacidade de ser parte, a resistência dos juízes em admitir que animais demandem em nome próprio justifica o novo preceito.

Infelizmente, no Brasil, é preciso afirmar por lei algo que já se poderia admitir por uma adequada interpretação constitucional.[16]

Mais do que isso, o novo preceito inclui, na ordem do dia dos processualistas, uma nova consideração sobre a tutela jurisdicional dos animais, não apenas no plano da tutela individual, como também no da coletiva.

Assim, ainda que os direitos animais sejam preponderantemente individuais (para a proteção da dignidade animal),[17] não se pode descartar a possibilidade da tutela coletiva dos direitos animais, especialmente na qualidade de direitos individuais homogêneos, o que justifica a inclusão do parágrafo único no artigo de abertura do projeto, para deixar claro que “A tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva.”

Rompido o obstáculo quanto à capacidade de ser parte dos animais (objeto do art. 1º do projeto), é preciso dar conta da capacidade de estar em juízo, definindo, dentro do Código de Processo Civil, quais são os legitimados para representar judicialmente os animais.

É difícil continuar dependendo do Decreto 24.645/1934 para essa tarefa, dada as polêmicas que ainda gravitam sobre essa lei,[18] inclusive acerca da sua vigência atual.[19]

O Código de Processo Civil é o locus adequado para a definição da capacidade processual, especialmente a capacidade de estar em juízo. Por isso, justifica-se o art. 2º do projeto, propondo o acréscimo do inciso XII ao art. 75 do CPC, para estabelecer que serão representados em juízo, ativa e passivamente, “os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.”

A inspiração para o novo inciso do CPC é o próprio art. 2º, § 3º do Decreto referido, há muito tempo evocado para a tutela jurídica dos animais, possibilitando que a representação processual dos animais se dê por obra do Ministério Público[20], dos responsáveis diretos pelo animal (tutor ou guardião) e pelas associações de proteção dos animais. Acrescentou-se a essa lista a Defensoria Pública, dada a sua vocação constitucional para a defesa dos mais vulneráveis (art. 134, Constituição).

  1. Considerações finais

Vale a pena transcrever a parte final da justificação do projeto apresentado, como conclusão deste pequeno artigo:

“Se até uma pessoa jurídica, que muitas vezes não passa de uma folha de papel arquivada nos registros de uma Junta Comercial, possui capacidade para estar em juízo, inclusive para ser indenizada por danos morais, parece fora de propósito negar essa possibilidade para que animais possam ser tutelados pelo Judiciário caso sejam vítimas de ações ilícitas praticadas por seres humanos ou pessoas jurídicas.”

“Com a aprovação deste projeto de lei, o Congresso Nacional pacificará essas questões processuais, possibilitando uma ampliação significativa da tutela jurisdicional dos animais, o que refletirá na proteção jurídica ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito fundamental de todos, conforme estabelecido no art. 225 da Constituição Federal.”

É crescente a convicção de que um mundo melhor e uma sociedade mais livre, justa e solidária depende de um pós-humanismo, no qual as qualidades humanas são “consideradas fruto da relação com os outros seres viventes, assim, o homem deve reconsiderar tal relação, incentivando-a e valorizando as alteridades. O que é rejeitado é exatamente a pretensão de considerar o homem como único protagonista do universo.”[21]

O Projeto de Lei 145/2021, do Deputado Eduardo Costa, é pós-humanista.

A aprovação do projeto pelo Congresso Nacional será um avanço civilizatório sem precedentes, permitindo que o próprio Direito Processual Civil se abra para a realização de uma tutela jurisdicional mais abrangente, mais inclusiva e não-especista.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

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[1]           Essa designação é utilizada pelo art. 6º da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola, ao passo que o art. 11º do Código de Processo Civil português prefere o termo personalidade judiciária.

[2]                 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense; Brasília: INL, 1973, tomo I, cit., p. 243.

[3]           Alguns autores, no entanto, não catalogam a capacidade de ser parte dentre os pressupostos processuais, nem mesmo dentre os de existência, como é o caso de Marcelo Abelha Rodrigues (Elementos de Direito Processual Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 1, 2003, p. 272 et seq.).

[4]           Nenhum dos Códigos de Processo Civil unitários brasileiros (1939, 1973 e 2015) contemplou a capacidade de ser parte, apenas se referindo à capacidade processual como capacidade de estar em juízo (por si só ou por representante/assistente). O Código de Processo da Bahia (Lei 1.121/1915), no período anterior à unificação do direito processual, nitidamente inspirado no § 50 do ZPO alemão, previa a capacidade de ser parte, separada da capacidade de estar em juízo, em seu art. 1º: “podem ser partes todos aqueles a quem a lei civil atribui capacidade jurídica.”

[5]          DIDIER JÚNIOR, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 119-120. A hipótese se apresenta, inclusive, em Pontes de Miranda: “Se o processo foi intentado pelo procurador quando já morto o autor, não houve relação jurídica processual.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. XXXIII).

[6]           A judicialização é o fenômeno da realização de direitos por meio do processo judicial. É possível apontar três níveis de judicialização do Direito Animal: (1) a judicialização primária, pela qual os animais são defendidos como parte da fauna e da biodiversidade, ou seja, pela sua função ecológica, por meio de instrumentos processuais de tutela coletiva, como a ação civil pública (Lei 7.347/1985); (2) a judicialização secundária, pela qual os animais passam a ser defendidos em juízo como indivíduos conscientes e sencientes, porém, por meio de ações titularizadas pelos seus responsáveis humanos, como nas ações envolvendo guarda compartilhada de animais após divórcio ou separação; (3) a judicialização terciária ou judicialização estrita do Direito Animal, por meio da qual os animais defendem seus direitos em nome próprio. Sobre o tema, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais. Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 46, n. 313, p. 95-128, mar. 2021. p. 119-120.

[7]           A legislação estadual, no âmbito da competência normativa concorrente para proteção da fauna (art. 24, VI, CF), já contempla o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos, em graus variados, a exemplo da Lei catarinense, em relação a cães e gatos (art. 34-A da Lei 12.854/2003, incluído pela Lei 17.485/2018 e alterado pela 17.526/2018), da Lei gaúcha, em relação aos animais domésticos de estimação (art. 216 da Lei 15.434/2020) e da Lei mineira, em relação a todos os animais, estabelecendo que “Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus a tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica” (Lei 22.231/2016, atualizada pela Lei 23.724/2020). Mas a lei estadual inequivocamente mais avançada e abrangente do Brasil, em termos de especificação de direitos subjetivos animais, é o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba (Lei Estadual 11.140/2018), com a explícita adoção da linguagem dos direitos, conforme o seu art. 5º: “Todo animal tem o direito: I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas; II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida; III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar; IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados; V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.” No âmbito federal, destaca-se o PLC 6.054/2019 (anterior 6.799/2013), de autoria do Deputado Ricardo Izar, já aprovado em ambas as casas do Congresso Nacional, o qual estabelece, em seu art. 3º, que “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.”

[8]           Para um quadro sobre as ações já propostas com animais demandantes, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O Decreto 24.645/1934 e a capacidade de ser parte dos animais no processo civil. Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, v. 21, n. 129, p. 83-101, jan./fev. 2021; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais, cit., p. 120-122.

[9]           O primeiro acórdão que temos notícia, no que concerne à judicialização terciária do Direito Animal, provém do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual, apesar de reconhecer que o animal demandante é sujeito de direitos, negou-lhe a capacidade de ser parte. Confira-se a ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. LEGITIMIDADE ATIVA DE CACHORRO DE ESTIMAÇÃO. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE CAPACIDADE DE SER PARTE. GRATUIDADE JUDICIÁRIA AOS AUTORES HUMANOS. NECESSIDADE EVIDENCIADA. 1. Ainda que a legislação constitucional e infraconstitucional inclusive a estadual, garanta aos animais uma existência digna, sem crueldade, maus tratos e abandono no caso dos de estimação, ela não lhes confere a
condição de pessoa ou personalidade judiciária. O novo CPC apenas reconhece a capacidade de ser parte às pessoas e entes despersonalizados que elenca em seus arts. 70 e 75, não incluindo em qualquer deles os animais. Assim, ainda que sujeito de direitos, o cão Boss não possui capacidade de ser parte, devendo ser mantida a sua exclusão do polo ativo da lide. 2. […]. Agravo de instrumento parcialmente provido. (TJRS, 9ª Câmara Cível, AI 5041295-24.2020.8.21.7000/RS, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 7 dez. 2020).

[10]         Quando o legislador constituinte originário estabeleceu a vedação às práticas cruéis contra animais, no inciso VII do § 1° do art. 225 da CF, fê-lo em razão de reconhecer que esses seres são sencientes e que, por tal motivo, merecem amparo proibitivo relativo à crueldade. Sendo assim, além do direito subjetivo de não ser submetido à crueldade, tal dispositivo revela, a um só tempo – dentre outros –, os princípios da dignidade e da universalidade de proteção. A respeito dos princípios do Direito Animal, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

[11]         A palavra especismo foi criada por Richard Ryder (speciesism) e difundida por Peter Singer, a partir dos anos 70 do século XX, para significar “o preconceito ou a atitude de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie e contra os de outras.” (SINGER, Peter. Libertação animal. Salvador: Lugano, 2004, p. 8).

[12]         DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 20. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, v. 1, p. 369.

[13]         NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 133-134.

[14]         GERAIGE NETO, Zaiden. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional: art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 39-41.

[15]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais, cit., passim; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 15, n. 2, p. 47-73, maio/ago. 2020, disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/37731/21502. Acesso em: 4 fev. 2021.

[16]         Como se sabe, “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224).

[17]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018; MAROTTA, Clarice Gomes. Princípio da dignidade dos animais: reconhecimento jurídico e aplicação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[18]         O Decreto 24.645/1934 não é um simples Decreto, mas verdadeira Lei ordinária, em todos os seus termos, e não apenas em relação às disposições penais. Por essa razão, permanece em vigor, pois somente Lei aprovada pelo Congresso Nacional poderia tê-lo revogado. Sobre o assunto, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais, cit., passim; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno jurídico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, p. 149-169, jul. 2001.

[19]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais, cit., passim.

[20]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; NOVINSKI, Monalyse Andressa. O Ministério Público como guardião dos direitos fundamentais animais. Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, n. 13, p. 193-214, dez. 2020.

[21]         MARCHESINI, Roberto. O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade. Revista do Instituto Humanitas Unisinos (on-line), São Leopoldo, ed. 200, 16 out. 2006. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao200.pdf. Acesso em: 22 maio 2020.

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