Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

A tendência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, favorável a limitar atividades humanas que usem animais de forma cruel, alegadas como culturais,[1] sofreu uma aparente interrupção, com um precedente de 2019, pelo qual se fixou tese no sentido que “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.[2]

Essa interrupção, no entanto, é aparente, porque o caso submetido à jurisdição constitucional não foi resolvido à luz da regra da proibição da crueldade contra animais, incluída no art. 225, § 1º, VII da Constituição.[3]

Não se trata, portanto, de um precedente de Direito Animal.

O recurso extraordinário foi apresentado pelo Ministério Público Estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que declarou constitucional a Lei Estadual 12.131/2004, a qual acrescentou o parágrafo único ao art. 2º da Lei Estadual 11.915/2003, com a seguinte redação: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.” As vedações do art. 2º dizem respeito a maus-tratos contra animais.

Acontece que, como consta do voto do Ministro Fachin, o recurso do Ministério Público combateu vícios de duas ordens:

(1) inconstitucionalidade formal, decorrente da ofensa ao art. 22, I, da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal, porquanto não poderia o Estado criar causa nova de exclusão de ilicitude, suprimindo o abate de animais em rituais religiosos da incidência do tipo penal do art. 32 da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais);[4]

(2) inconstitucionalidade material, ante a violação do art. 19, I, da Constituição,[5] visto que a norma teria excepcionado apenas os cultos de matriz africana.

Como se pode ver, o Ministério Público gaúcho não se dispôs a discutir, por meio do apelo extraordinário, a proibição do sacrifício ritual à luz da regra disposta na parte final do art. 225, § 1º, VII, da Constituição (vedação da crueldade contra animais). Ainda que os Ministros tenham debatido se ocorre ou não crueldade no sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana,[6] essa não foi a ratio decidendi do julgamento.

Em outras palavras, o debate sobre crueldade contra animais nos sacrifícios rituais configurou obiter dictum, uma vez que essa questão era dispensável à solução do caso submetido à Corte Suprema, considerando o teor as razões recursais.

O precedente fundou-se, determinantemente, pela:

(1) natureza administrativa da lei inquinada, o que lhe coloca sob o albergue da competência legislativa concorrente, nos termos do art. 24, VI, da Constituição; e pela:

(2) proteção especial da liberdade de culto das religiões de matriz africana, dado que, conforme palavras do Ministro Barroso, “tais religiões é que têm sido, historicamente, vítimas de intolerância, de discriminação e de preconceito.”

Ainda que o resultado não motive comemorações para a causa animalista,[7] pode-se concluir que esse precedente não abalou a linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em matéria de Direito Animal e da aplicação da regra constitucional da proibição da crueldade.

Não parece ser um ponto fora da curva

O julgamento simplesmente não se pautou nessa regra, discutida, en passant, como obter dictum, pelo que não se descarta a possibilidade do sacrifício religioso de animais voltar a ser debatido na Supremo Corte, agora sob a ótica dessa regra e do princípio constitucional da dignidade animal.[8]

[1]     Proibição da farra do boi em Santa Catarina: STF, 2ª Turma, RE 153.531-SC, Relator Ministro FRANCISCO REZEK, acórdão lavrado pelo Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 03/6/1997, publicado em 13/3/1998; proibição das rinhais de galo: STF, Pleno, ADIn 2514-7/SC, Relator Ministro EROS GRAU, julgado em 29/6/2005, publicado em 09/12/2005; STF, Pleno, ADIn 3776-5/RN, Relator Ministro CÉZAR PELUSO, julgado em 14/6/2007, publicado em 29/6/2007; STF, Pleno, ADIn 1856/RJ, Relator Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 26/5/2011, publicado em 14/10/2011; proibição da vaquejada:  STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[2]     STF, Pleno, RE 494.601-RS, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Relator para acórdão Ministro EDSON FACHIN, julgado em 28/3/2019, publicado em 19/11/2019.

[3]     Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifos nossos).

[4]     Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. […]

[5]     Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […].

[6]     O Ministro Alexandre de Moraes negou, peremptoriamente, ocorrência de crueldade nesses rituais religiosos e o Ministro Marco Aurélio condicionou o sacrifício do animal ao consumo posterior da carne.

[7]     BRAZ, Laura Cecília Fagundes dos Santos; BRAZ, Helena Maria Fagundes dos Santos Mota; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Sacrifício de animais em cerimônias religiosas na pauta do STF: direito à liberdade religiosa sobreposto ao direito à vida animal não humana. Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, v. 14, n. 3, set./dez. 2019. DOI: 10.5902/1981369432093.

[8]     MAROTTA, Clarice Gomes. Princípio da dignidade dos animais: reconhecimento jurídico e aplicação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.