Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

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  1. O crime de maus-tratos contra animais após a Lei “Sansão”

O crime de maus-tratos contra animais (rectius: crime contra a dignidade animal) está previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, e recebeu um parágrafo 1º-A pela Lei 14.064/2020.

A redação atual do dispositivo é a seguinte, com destaque nosso:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

A Lei 14.064/2020 foi batizada como “Lei Sansão” (em homenagem ao cão vítima de tortura e amputação das patas traseiras) e resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do Deputado Federal Fred Costa (PATRIOTAS/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.[2]

  1. O tipo qualificado do crime contra cães e gatos

 O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.

No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, “em estabelecimento de segurança máxima ou média” (art. 33, § 1º, I, CP).

Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Ademais, também não se trata de infração de médio potencial ofensivo, pois deixa de ser compatível com a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), em razão de sua pena mínima ser superior a um ano.

Trata-se, portanto, de infração de máximo potencial ofensivo.

Em consequência:

(1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (art. 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (art. 159, CPP);

(2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (art. 313, I, CPP), após audiência de custódia;

(3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (art. 322, CPP);

(4) descabe transação penal (art. 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (art. 394, § 1º, I, CPP);

(5) também não cabe, como já dito, a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.

  1. A violência como elementar do tipo no crime de maus-tratos contra animais

Ao contrário do que se costuma dizer, não é o meio ambiente, a natureza, o equilíbrio ecológico ou a biodiversidade os bens diretamente protegidos pela norma penal contida no art. 32 da Lei 9.605/1998. Muito menos algo como o “sentimento de solidariedade para com os animais”. A criminalização das condutas apontadas no tipo, simples ou qualificado, decorre da regra da proibição da crueldade contra animais, estabelecida no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, da qual se revelam o valor intrínseco de todo animal e a dignidade animal individual, independentemente das suas funções ecológicas.[3]

Destarte, vislumbra-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime. Apenas como sujeito passivo mediato do crime poder-se-ia cogitar o meio ambiente, bem como seus consectários.

Considerando isso, deve-se perceber que todo crime tipificado no art. 32 da Lei  9.605/1998 é doloso e violento. A violência intencional, nesse caso, é dirigida ao animal vítima do crime. Não há abuso, maltratamento, ferimento, mutilação ou experimentação dolorosa indevida sem violência contra o animal.

A violência contra os animais não é limitada ao sofrimento físico diretamente infligido, como no caso do ferir ou do mutilar, constantes do tipo penal. Os maus-tratos, nas suas diferentes caracterizações,[4] o abuso e a utilização indevida em experimentos científicos dolorosos também são condutas humanas violentas contra animais, descritas no tipo, nas quais o sofrimento animal pode ser tanto físico, como psíquico.[5]

Vale sempre relembrar que os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais.[6]

  1. O acordo de não persecução penal após a Lei 13.964/2019

O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor.[7]

A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.

Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no art. 28-A do Código de Processo Penal.

Da leitura do referido art. 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (grifo nosso); (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O § 2º do art. 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.

  1. Da impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos

É evidente que, no tipo simples do crime de maus-tratos contra animais são cabíveis diversas medidas despenalizadoras, como a transação penal, dado que, por enquanto, se trata de crime de menor potencial ofensivo, submetido às branduras dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Descabe o acordo de não persecução penal nesse caso (art. 28-A, § 2º, I, CPP), até por ser desnecessário.

Mas, em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do art. 32, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado se tratar de crime de máximo potencial ofensivo.

Ocorre que também se deve concluir não ser cabível o acordo de não persecução penal para esse tipo qualificado de crime contra animais.

Isso porque, como visto, um dos requisitos obrigatórios para permitir o acordo e impedir a persecução penal é que o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça. Leia-se bem o caput do art. 28-A do CPP: não se fala em violência ou grave ameaça à pessoa, como que para se referir tão somente à violência ou grave ameça a seres humanos, os quais são pessoas naturais.

Quando a lei penal quer se referir, especialmente, à violência contra pessoa, o faz expressamente, como no art. 318-A, I, do Código de Processo Penal, no art. 112 da Lei de Execuções Penais e, dentre outros, nos arts. 16; 44, I; 71, par. ún.; 83, par. ún. e 157 do Código Penal.

Isso não quer dizer que nas hipóteses em que a lei penal fala em violência, sem se referir à pessoa, não esteja se referindo à violência contra o ser humano. Na maioria das vezes efetivamente está implícita essa referência, especialmente quando há  menção a alguém (v. g., art. 146, 158 e 197 do Código Penal).

O que se chamar a atenção é que nas hipóteses de violência em que não há a referência expressa à pessoa, é possível, especialmente em relação às normas processuais penais (normas não incriminadoras), proceder a uma interpretação extensiva (art. 3º, CPP), para abranger todas as possibilidades de violência contra seres sencientes, como os cães e gatos, não se limitando aos seres humanos.

Esse aporte interpretativo pós-humanista para o Direito Processual Penal é adequado e razoável, considerando a crescente sensibilização social para o tema da violência contra animais, do que é demonstração a própria Lei Sansão.

É por essa razão que não se deve admitir o acordo de não persecução penal em relação ao crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos, considerando que a violência contra os animais é ínsita ao tipo penal. O art. 28-A do CPP não se refere à violência ou grave ameaça à pessoa, mas, de forma mais ampla, à violência ou grave ameaça em geral, o que deve abranger as práticas violentas dirigidas a qualquer ser vivo senciente (especialmente cães e gatos), dada a existência de tipos penais – como o do art. 32 – que protegem a dignidade para além dos seres humanos.

Consequentemente, o acordo de não persecução penal que envolva o crime do art. 32, § 1º-A, da Lei 9.605/1998 não deve ser homologado pelo juiz criminal, dado envolver infração penal com violência a ser senciente (cães ou gatos), aplicando-se o disposto no § 7º do art. 28-A do CPP.

Contra a decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, cabe recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, XXV, do CPP, com redação dada pela Lei 13.964/2019.

Por fim, seria importante abrir à vítima a possibilidade de controle sobre o acordo de não persecução penal, postulando a sua revisão pelas instâncias superiores do próprio Ministério Público, na forma preconizada pelo art. 28, § 1º, do CPP, com a redação dada pela Lei 13.964/2019.[8] Com o mesmo propósito, poder-se-ia cogitar de uma apelação supletiva para o ofendido contra a decisão que homologar o acordo, dado se tratar de decisão definitiva (art. 593, II, CPP).

[1]           Artigo escrito com a colaboração de Lucas Eduardo de Lara Ataide, advogado e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal, presidido pelo Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos.

[2]           Para uma visão mais completa sobre o tema, consultar, ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; ATAIDE, Lucas Eduardo de Lara. Comentários sobre o crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Jus Navigandi, Teresina, nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86787/comentarios-sobre-o-crime-qualificado-de-maus-tratos-contra-caes-e-gatos-art-32-1-a-lei-9-605-1998#:~:text=Al%C3%A9m%20da%20pena%20privativa%20de,pena%20restritiva%20de%20direitos%20(art. Acesso em: 27 jan. 2021.

[3]           Cf. STF, Pleno, ADI 4983, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[4]           Nas hipóteses catalogadas, por exemplo, no art. 3º do Decreto 24.645/1934 ou no art. 5º da Resolução CFMV n.º 1.236/2018.

[5]           A violência, de fato, há muito não se concebe como restrita ao fenômeno da agressão física. Veja-se, apenas a título de ilustração contemporânea, o quadro de violências possíveis contra a mulher, no âmbito da violência doméstica e familiar, preconizado pelo art. 7º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

[6]           Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/06/declaracao-de-cambridge-portugues.pdf. Acesso em: 14 jul. 2020.

[7]           Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, HC 636.279/SP, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK, julgado em 09/03/2021, publicado em 23/03/2021.

[8]           Sobre a eficácia desse novo dispositivo, ver: STF, Decisão Monocrática, ADI/MC 6288, 6299, 6300 e 6305/DF, Min. LUIZ FUX, 22/01/2020. Sobre o tema do novo arquivamento do inquérito policial, consultar, ARENHART, Bianca Geórgia Cruz. Uma leitura constitucional do novo modelo de arquivamento do inquérito policial. Consultor Jurídico, 2 abr. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-02/arenhart-modelo-arquivamento-inquerito-policial. Acesso em: 12 jun. 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.