Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.
  1. O Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba foi instituído pela Lei Estadual 11.140, de 8 de junho de 2018,[1] com entrada em vigor no dia 7 de outubro de 2018,[2] oriundo do Projeto de Lei 934, distribuído em 7 de junho de 2016, de autoria do Deputado Estadual Antonio Hervázio Bezerra Cavalcanti (PSB),[3] aprovado por unanimidade,[4] com veto parcial, apresentado pelo Governador do Estado, mantido também de forma unânime.[5]

O texto-base do anteprojeto que deu origem à tramitação legislativa foi escrito pelo Prof. Francisco José Garcia Figueiredo, da Faculdade de Direito da UFPB e presidente/fundador da Comissão de Direito Animal da OAB/PB, reconhecido, nacionalmente, como uma das mais importantes autoridades em Direito Animal do Brasil.[6]

Esse texto, antes mesmo de ser submetido à Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi objeto de amplo e democrático debate com a sociedade paraibana, em várias audiências públicas, inclusive em sessões especiais da própria Assembleia Legislativa, com a participação de várias pessoas e entidades, dos setores público e privado, inclusive do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Paraíba.[7]

Talvez a prova mais contundente do processo democrático de formulação do respectivo projeto de lei esteja representada pelo fato de que as objeções ao texto, colhidas durante as audiências públicas, acabaram não sendo incorporadas ao Projeto de Lei 934/2016, tais como a proibição do tráfego estadual de veículos com tração animal e a proibição da vaquejada.

  1. Trata-se, sem sombra de dúvidas, da legislação mais avançada do Brasil – e sem igual no mundo – em termos de direitos animais.

É a primeira lei brasileira a catalogar, expressamente, direitos subjetivos aos animais não-humanos.

Segundo o art. 5° do Código paraibano,

Art. 5º. Todo animal tem o direito:

I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas;

II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida;

III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar;

IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados;

V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.

Esse catálogo mínimo de direitos não é reservado apenas para cães e gatos, nem mesmo apenas para animais vertebrados, mas inclui os invertebrados, como polvos e caranguejos, muito além do que, originalmente, o Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, editado por Getúlio Vargas, – o primeiro estatuto brasileiro dos animais , poderia conceber.

  1. É possível uma lei estadual reconhecer direitos a animais não-humanos?

Sim, porque a Constituição Federal de 1988 permite e a isso conduz.

Ao disciplinar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição introduziu a regra da proibição das práticas cruéis contra animais, paralelamente à regra da proibição das práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna (art. 225, §1º, VII).

Com isso, a Constituição protege os animais em duas frentes: pelo Direito Animal, no qual os animais são considerados seres conscientes[8] e dotados de dignidade própria, razão pela qual interessam como sujeitos-indivíduos e a sua proteção se faz independentemente da sua relevância ecológica; e pelo Direito Ambiental, no qual os animais são considerados como espécie, enquanto elementos da biodiversidade, imprescindíveis ao equilíbrio ecológico e à sadia qualidade de vida.[9]

Além disso, é a Constituição Federal que reparte a competência legislativa para tratar dos animais (“fauna”) entre União e Estados (art. 24, VI), limitando a competência da União para editar normas gerais.[10]

Isso tudo significa que o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba realiza a Constituição brasileira melhor do que o Código Civil de 2002, o qual, atrasado nesse e em outros aspectos, ainda enxerga os animais não-humanos, cartesianamente, como coisas[11] ou bens semoventes.[12]

  1. Os animais, segundo o art. 2º da Lei paraibana, são “seres sencientes e nascem iguais perante a vida, devendo ser alvos de políticas públicas governamentais garantidoras de suas existências dignas, a fim de que o meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida dos seres vivos, mantenha-se ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.”

Mas não apenas conceitualmente o Código da Paraíba é modelar.

Trata-se de verdadeira codificação das principais regras e princípios de Direito Animal,[13] enfrentando, com coragem e inovação, dentro do que lhe reserva a Constituição Federal, os principais desafios da proteção animal, coibindo o abuso e a crueldade, sem comprometer o desenvolvimento econômico e social do Estado da Paraíba.

São 119 artigos, divididos em três Títulos.

O Título I constitui uma verdadeira Parte Geral do Direito Animal, com seus conceitos fundamentais, o elenco dos direitos animais, além das bases para uma Política Estadual de Política Animal.

A parte geral inclui um extenso rol de tipificações de maus-tratos a animais (art. 7º, §§ 2º e 3º), além de uma série de condutas proibidas (art. 8º).

O Título II pode ser considerado uma Parte Especial: trata das peculiaridades dos animais silvestres, dos animais domésticos e dos animais em produção, em entretenimento, em veículos de tração/montaria, em transporte, no comércio e em experimentos científicos.

Nessa parte especial, dentre outras medidas de destaque, proíbe: qualquer modalidade de caça (art. 21), a cirurgia de cordotomia em cães e gatos (art. 50), a utilização de cães para fins de vigilância, segurança, guarda patrimonial e pessoal nas propriedades públicas e privadas (art. 51), a permanência, utilização e/ou exibição de animais de qualquer espécie em circos, espetáculos e eventos (art. 63).

A par de proibições, estabelece o regime de tutela responsável de animais domésticos (art. 22 e seguintes), restringe, com cautela justificável, a prática da eutanásia aos animais portadores de enfermidade de caráter zoonótico ou infectocontagioso incurável e que coloque em risco a saúde e a segurança de pessoas e/ou de outros animais (art. 25, I), bem como institui a cláusula de escusa de consciência à experimentação com animais (art. 93).

O Título III contempla, além de disposições finais, o Direito Animal sancionador, não-criminal, prevendo as infrações administrativas e as respectivas sanções pela violação, inclusive por pessoas jurídicas, públicas e privadas, das regras do Código.

  1. O Código de Direito Animal da Paraíba é um Código para o Brasil.

É um modelo que realiza a vontade constitucional brasileira e coloca o Brasil na vanguarda das legislações mundiais de proteção animal. Deve ser implementado em todos os seus artigos. Deve ser copiado e seguido por outros Estados da Federação ou, quem sabe, inspirar um Código Federal Geral nas mesmas bases conceituais e normativas, que replique, em todos os cantos do território nacional, a concepção dos animais como sujeitos de direitos fundamentais.

Leis como essa é que reafirmam a existência de um Direito Animal positivo no Brasil.[14]

Mas, evidentemente, uma lei tão avançada e ambiciosa, comprometida com os direitos fundamentais e com a realização da Constituição, alçando todos os animais não-humanos à qualidade de sujeitos de direitos, já passou a receber resistências dos setores mais atrasados da sociedade brasileira.[15]

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[1]              Publicada no Diário Oficial do Estado da Paraíba (DOE-PB) de 9 de junho de 2018, com período de vacância de 120 dias. Disponível em: http://static.paraiba.pb.gov.br/2018/06/Diario-Oficial-09-06-2018.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[2]              Considerando os termos do art. 8º, §1º da Lei Complementar 95/1998, com a redação dada pela Lei Complementar 107/2001.

[3]              Na Comissão Especial da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, instituída para apreciar o projeto de Código, a relatoria coube à Deputada Estadual Estela Bezerra (PSB), a qual, apesar da coincidência de sobrenomes, não tem parentesco com o autor do projeto, Deputado Hervásio Bezerra.

[4]              Conforme informações obtidas no site da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/consultas/materia/materia_mostrar_proc?cod_materia=50416. Acesso em: 13  maio 2021.

[5]              Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/materia/58106_texto_integral. Acesso em:  13  maio 2021.

[6]              A Comissão de Direito Animal da OAB-PB, sob a liderança do Prof. Francisco José Garcia Figueiredo, realizou várias ações importantes, em defesa dos animais, no ano de 2018: atuou pela apuração dos responsáveis pela matança de cães, no chamado “Caso de Igaracy” (março/2018): https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/mais-de-30-cachorros-sao-sacrificados-por-prefeitura-em-igaracy-sertao-da-pb.ghtml ; interveio para coibir a matança de gatos junto à Prefeitura Municipal de João Pessoa (maio a junho/2018): https://correiodaparaiba.com.br/crime/em-menos-de-dois-meses-21-gatos-sao-mortos-no-centro-administrativo-municipal/ ; denunciou que mais de 300 gatos foram mortos em João Pessoa desde janeiro de 2017: https://www2.pbagora.com.br/noticia/policial/20180724083123/mais-de-300-gatos-ja-foram-chacinados-em-jp-desde-janeiro-de-2017 ; bem como trouxe, para João Pessoa/PB, o VI Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal, realizado no Centro Cultural José Lins do Rêgo: http://www.ufpb.br/antigo/content/jo%C3%A3o-pessoa-sediar%C3%A1-evento-internacional-de-bio%C3%A9tica-e-direito-animal.

[7]              Conforme constam das atas das respectivas sessões e reuniões ordinárias das audiências públicas.

[8]              Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto original, em inglês, disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[9]              Essa dualidade já foi reconhecida pelo STF, por ocasião do julgamento da ADIn 4983 (“ADIn da vaquejada”), conforme voto do Min. Luis Roberto Barroso: “A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 6/10/2016, publicado em 27/4/2017, grifos nossos).

[10]            Sobre a repartição de competências em matéria de proteção ambiental: SARLET, Ingo Wolfang. O sistema de repartição de competências na CF. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 821-828.

[11]            A Áustria foi pioneira em incluir, no seu Código Civil, em 1988, um dispositivo afirmando que os animais não são coisas (tiere sind keine sachen), protegidos por leis especiais (§285a do ABGB); no mesmo sentido, em 1990, foi inserido o §90a no BGB alemão; em 2003, também no art. 641a do Código Civil suíço; de forma diferenciada foi a alteração do Código Civil francês, em 2015, dispondo, em seu art. 515-14, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade (Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité.); na mesma linha do direito francês, mudou o Código Civil português, em 2017, estabelecendo que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (art. 201º-B).

[12]            No Brasil, há o Projeto de Lei da Câmara 6.054/2019 (nº do Senado: 27/2018; nº original da Câmara: 6799/2013), de autoria dos Deputados Ricardo Izar e Weliton Prado, o qual estabelece que “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa” (art. 3º). Esse projeto já foi aprovado na Câmara e no Senado, mas, como recebeu emenda aditiva no Senado (foi incluído um parágrafo único ao art. 3º: “A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.”), retornou à Câmara para análise da modificação. Note-se que, pelo projeto, todos os animais passam a ser considerados sujeitos de direitos, ainda que sem personalidade jurídica, não podendo mais ser tratados como coisas, modificando a interpretação comumente dada ao Código Civil brasileiro. Não obstante, conforme emenda aprovada no Senado, alguns animais não poderão gozar e obter a tutela jurisdicional dos seus direitos, exceção essa, no entanto, frontalmente inconstitucional, pois viola a garantia do acesso à justiça, conforme art. 5º, XXXV, da Constituição. A emenda do Senado, aliás, expressamente reconhece a dignidade animal. Por essas razões, espera-se que esse projeto seja definitivamente aprovado, sancionado e promulgado, preferencialmente sem a inconstitucional emenda senatorial, eliminando eventuais dúvidas sobre a existência de direitos animais. Texto final do artigo aprovado disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/08/parecer-198-2019.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[13]            ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018.

[14]            Além do Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba, outras leis estaduais, no âmbito da competência normativa concorrente para proteção da fauna (art. 24, VI, CF), já contemplaram o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos,
em graus variados, a exemplo da Lei catarinense, em relação a cães e gatos (art. 34-A da Lei 12.854/2003, incluído pela Lei 17.485/2018 e alterado pela 17.526/2018), da Lei gaúcha, em relação aos animais domésticos de estimação (art. 216 da Lei 15.434/2020) e da Lei mineira, em relação a todos os animais, estabelecendo que “Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus a tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica” (Lei 22.231/2016, atualizada pela Lei 23.724/2020).

[15]            Em sessão plenária ocorrida no dia 5 de junho de 2019, o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (TJPB), a partir do voto do relator, Desembargador Leandro dos Santos, decidiu, por unanimidade, conceder medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Federação de Agricultura e Pecuária do Estado da Paraíba, para suspender quase uma centena e meia de dispositivos da Lei Estadual 11.140/2018, que instituiu o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba. Para uma análise aprofundada dessa decisão e suas circunstâncias, consultar o estudo por nós elaborado, disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/08/tjpb_suspende_parcialmente_o_codigo_de_d.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.