Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

Houve tempo em que se podia pensar que um cão ou um gato, ou mesmo um boi, um porco, uma galinha ou um peixe fossem coisas equivalentes a um relógio ou a uma outra máquina qualquer.

Assim se pensava diante da pressuposição de que animais, além de não serem dotados de razão e de linguagem, não pudessem sofrer ou experimentar sentimentos dolorosos.[1]

A Ciência demonstrou que os animais são seres vivos dotados de consciência, com capacidade de sentir dor e prazer (a senciência).[2]

A partir dessa constatação, Peter Singer, nos anos 70 do século passado, deduziu que não há justificativa moral para considerar que a dor que os animais sentem seja menos importante que a mesma intensidade de dor sentida por humanos.[3]

Com essas bases, todo um novo desenvolvimento ético-filosófico foi produzido para perquirir e redimensionar a posição dos animais no mundo e nas suas relações com os seres humanos.

Fato é que esse movimento filosófico, acompanhado dos movimentos sociais de defesa e proteção animal, acabaram por influenciar a redação da Constituição Federal brasileira, a qual completou, em 2018, 30 anos de promulgação.

A Constituição, no art. 225, §1º, VII, estabelece que incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

A parte final desse inciso consagra a regra constitucional da proibição da crueldade, derivada do reconhecimento de que animais são seres sencientes, que sofrem e que, portanto, são dotados de uma dignidade própria. Do mesmo dispositivo constitucional é possível extrair o princípio da dignidade animal, verdadeiro estrutural do Direito Animal.[4]

Ora, nos dias de hoje, em que não mais se admite a escravidão e a discriminação preconceituosa (nem racismo, nem sexismo), é evidente que toda dignidade deve ser protegida por um catálogo mínimo de direitos fundamentais (a impedir, também, qualquer forma de especismo ou discriminação pela espécie[5]).

Por isso é que se reconhece aos animais o direito fundamental à existência digna, posta a salvo de práticas cruéis, o qual se posiciona como uma nova dimensão desses direitos: os direitos fundamentais pós-humanistas (direitos fundamentais de 4ª dimensão).[6]

O novo ramo do Direito, composto pelas regras e princípios que estabelecem os direitos dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica ou econômica, denomina-se Direito Animal.[7]

O Direito Animal não se confunde com o Direito Ambiental porque, neste, os animais são considerandos como espécie, relevantes pela sua função ecológica, ao passo que, naquele, os animais são considerados como indivíduos conscientes e sencientes, importantes por si só, independentemente da sua função ambiental, ecológica ou econômica.

A autonomia do Direito Animal já foi reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento, no final de 2016, da ADIn 4983 (ADIn da vaquejada).[8]

Nesse julgamento, o Ministro Luís Roberto Barroso, em voto histórico, afirmou:

“A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.”

Toda essa realidade demonstra-se completamente incompatível com as equiparações tradicionais entre animais e coisas, animais e bens ou com a consideração dos animais como simples meios para o uso arbitrário desta ou daquela vontade humana.

Por essas razões, as interpretações tradicionais sobre o art. 82 do Código Civil brasileiro de 2002 (conceito de bens móveis) estão defasadas e não conversam bem com a Constituição: animais não são coisas.[9]

No Congresso Nacional, tramitam vários projetos de lei com o objetivo de conferir novo status jurídico aos animais e alterar o Código Civil.

Dentre outros, o mais avançado é o Projeto de Lei da Câmara 6054/2019 (n.º atual na Câmara), oriundo do Projeto de Lei da Câmara 6799/2013 (n.º original da Câmara), de autoria dos Deputados Ricardo Izar e Weliton Prado, o qual estabelece que “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa” (art. 3º).[10]

Esse projeto já foi aprovado na Câmara e no Senado (n.º no Senado: 27/2018), mas, como recebeu emenda aditiva no Senado (foi incluído um parágrafo único ao art. 3º: “A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.”), retornou à Câmara para análise da modificação.

Note-se que, pelo projeto, todos os animais passam a ser considerados sujeitos de direitos, ainda que sem personalidade jurídica, não podendo mais ser tratados como coisas, modificando a interpretação comumente dada ao Código Civil brasileiro.

Não obstante, conforme emenda aprovada no Senado, alguns animais não poderão gozar e obter a tutela jurisdicional dos seus direitos, exceção essa, no entanto, frontalmente inconstitucional, pois viola a garantia do acesso à justiça, conforme art. 5º, XXXV, da Constituição. Não obstante, a emenda do Senado   expressamente reconhece a dignidade animal.

Por essas razões, espera-se que esse projeto seja definitivamente aprovado, sancionado e promulgado – preferencialmente sem a inconstitucional emenda senatorial – eliminando eventuais dúvidas sobre a existência de direitos fundamentais de quarta dimensão.

Além desse, merece destaque o Projeto de Lei da Câmara 145/2021, de autoria do Deputado Eduardo Costa, o qual, em seu art. 1º, impõe que “Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.” Esse projeto também altera o Código de Processo Civil para atualizar as disposições sobre a capacidade processual dos animais.[11]

Com a aprovação de ambos os projetos, atendem-se, no plano federal, às reivindicações para que animais sejam sujeitos de direitos (plano material) e sujeitos do processo (plano processual).

Falar que animais não são coisas já é falar de uma realidade que cada vez mais se consolidada em todos os planos de produção jurídica: na Constituição, nas leis, na jurisprudência e na academia.

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[1]              ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; SILVA, Débora Bueno. Consciência e senciência como fundamentos do Direito Animal. Revista Brasileira de Direito e Justiça, Ponta Grossa: UEPG, v. 4, n. 1, p. 155-203, jan./dez. 2020.

[2]              Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto original, em inglês, disponível em: <http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf>. Acesso em: 4. abr. 2018.

[3]              SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre, São Paulo: Lugano, 2004.

[4]
O princípio da dignidade animal está na base estrutural do Direito Animal, seja qual for a nacionalidade da ordem jurídica que o contemple. Não é possível falar em direitos animais sem reconhecer um estatuto de dignidade próprio para os animais não-humanos. No Brasil, esse princípio dimana do dispositivo constitucional que proíbe a crueldade contra animais, assentando que os animais também interessam por si mesmos, como seres conscientes e sencientes, a despeito da sua relevância ecológica, não podendo ser reduzidos ao status de coisas, nem serem objetos da livre ou ilimitada disposição da vontade humana. Como todo princípio é teleológico e visa a estabelecer um estado de coisas que deve ser promovido, sem descrever, diretamente, qual o comportamento devido, o princípio da dignidade animal tem, como conteúdo, a promoção de um redimensionamento do status jurídico dos animais não-humanos, de coisas para sujeitos, impondo ao Poder Público e à coletividade comportamentos que respeitem esse novo status, seja agindo para proteger, seja abstendo-se de maltratar ou praticar, contra eles, atos de crueldade ou que sejam incompatíveis com a sua dignidade peculiar. Com o princípio constitucional da dignidade animal, o Direito Animal vai além da proibição das práticas cruéis, para também disciplinar outras questões que dizem respeito à dignidade animal, mas que não envolvem, necessariamente, a crueldade: criação, compra, venda, leilão e sorteio de animais, antropomorfização de animais de estimação, uso da imagem de animais, guarda e direito de visitas de animais de estimação (em vez de partilha de bens), destinação adequada e respeitosa de restos mortais etc. Como uma das principais consequências desse princípio constitucional, o Código Civil brasileiro, enquanto lei ordinária, precisa ser relido, conforme a Constituição, para afastar qualquer interpretação que resulte em atribuir aos animais o status jurídico de coisa, bem móvel ou bem semovente. (ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020).

[5]
A palavra especismo foi criada por Richard Ryder e difundida por Peter Singer, a partir dos anos 70 do século XX, para significar “o preconceito ou a atitude de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie e contra os de outras.” (SINGER, Peter. Libertação animal, cit., p. 8).

[6]              ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Direito Animal e Constituição. Revista Brasileira de Direito e Justiça, Ponta Grossa: UEPG, v. 4, n. 1, p. 13-67, jan./dez. 2020.

[7]              ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018.

[8]           Eis a ementa do respectivo acórdão: “VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS –CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada.” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017).

[9]           A Áustria foi pioneira em incluir, no seu Código Civil, em 1988, um dispositivo afirmando que os animais não são coisas (tiere sind keine sachen), protegidos por leis especiais (§285a do ABGB); no mesmo sentido, em 1990, foi inserido o §90a no BGB alemão; em 2003, também no art. 641a do Código Civil suíço; de forma diferenciada foi a alteração do Código Civil francês, em 2015, dispondo, em seu art. 515-14, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade (Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité.); na mesma linha do direito francês, mudou o Código Civil português, em 2017, estabelecendo que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (art. 201º-B).

[10]            Sobre esse projeto de lei, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; LOURENÇO, Daniel Braga. Considerações sobre o projeto de lei Animais Não São Coisas. Consultor jurídico, 1 set. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-01/ataide-junior-lourenco-pl-animais-nao-sao-coisas#:~:text=Pelas%20raz%C3%B5es%20expendidas%2C%20a%20aprova%C3%A7%C3%A3o,animais%20n%C3%A3o%20humanos%20no%20Brasil. Acesso em: 13 abr. 2021.

[11]            Sobre esse projeto de lei, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade de ser parte dos animais: PL 145/2021 é avanço sem precedentes. Consultor jurídico, 15 fev. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-15/vicente-ataide-junior-capacidade-parte-animais. Acesso em: 13 abr. 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.