“A libertação animal também é a libertação humana.” Com esta frase, o filósofo australiano Peter Singer encerrou o prefácio de um de seus mais famosos livros, Libertação Animal, lançado em 1975. Quarenta anos depois, sociedades do mundo inteiro ainda discutem as questões apresentadas pelo escritor no que diz respeito aos direitos animais.

 

Pela primeira vez, em 2019, a Faculdade de Direito (FD) da USP, em São Paulo, oferecerá uma disciplina que se compromete a pensar a fundo sobre o assunto.

Coordenada pelo professor Roberto Augusto de Carvalho Campos, do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da FD, Direitos Animais tem como principal objetivo “estudar os animais não humanos frente ao direito, numa perspectiva ética”, descreve a professora colaboradora Ivanira Pancheri, também responsável pelas aulas.

Além de ser advogado, o professor responsável também possui formação médica e é especializado em temas como bioética e biodireito. A parceria com a pesquisadora, que se interessa pessoalmente pelo assunto, deu origem à cadeira.

“Queremos propiciar aos estudantes o entendimento do corpo específico de leis que rege o Direito Animal”, afirma ela ao explicar que o semestre envolverá também o estudo de áreas adjacentes que impactam o tema, como filosofia e economia, por exemplo. A ideia é compreender “a percepção dos valores envolvidos e o contexto atual, incluindo a viabilidade de recomendações para tomada de políticas públicas”, diz.

O programa da disciplina que, para Ivanira, é de “suma importância” tratará de questões críticas envolvendo o uso de animais para alimentação, experimentos e entretenimento diante da preocupação crescente com seu bem-estar. “A disciplina discute ética animal, bem-estar animal, a abrangência do ponto de vista do direito, da medicina veterinária, a questão econômica”, enumera ela, ao afirmar que foi percebido um vácuo no estudo dos direitos animais nas universidades brasileiras.

“Aqui no Brasil, por exemplo, nas faculdades de medicina veterinária, você tem uma preocupação com a produção animal, com mutações genéticas, mas isso passa ao largo da questão do bem-estar animal e da ética”, defende a especialista.

De acordo com ela, centros de estudo de peso pelo mundo estão décadas na frente do País quando o assunto são os direitos animais. “Nos Estados Unidos, por exemplo, a lei animal é ensinada em algumas das mais conceituadas e prestigiadas escolas de direito, como Harvard, Stanford, UCLA, Northwestern, Universidade de Michigan, Columbia, Duke e Yale”, lista, ao racionalizar que, ainda que possamos imaginar que os direitos animais possam estar embutidos no Direito Ambiental, eles não são formalmente endereçados.

Por que se estudam os direitos animais?

Lançado há pouco mais de 40 anos, o livro divisor de águas escrito por Singer deu início a um movimento que ainda pode ser considerado recente, mesmo na Europa e nos Estados Unidos. Ao começar a discussão sobre a senciência animal, o filósofo buscou envolver tanto a academia quanto a sociedade.

Em linhas gerais, a senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Para especialistas, um animal é um ser senciente porque tem a capacidade de sentir.

Sobre esse assunto, Ivanira ilustra que, em 2012, um grupo de neurocientistas que participaram de uma conferência sobre Consciência em Animais Humanos e Não Humanos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, assinou a Declaração de Cambridge sobre a Consciência.

“A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados conscientes, juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso da evidência indica que os seres humanos não são únicos em possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”.

 

De acordo com a professora, pensar sobre o assunto e permitir que os animais deixem de ser considerados “uma mera coisa” é crucial, já que “a partir do momento que você ainda enxerga o animal como uma coisa, se houver conflito de interesses entre o proprietário e a coisa, juridicamente se fica do lado do proprietário”, esclarece.

E o Brasil com isso?

Ao abrir a discussão sobre os direitos animais, especialistas almejam uma alteração legislativa embasada no reconhecimento da senciência. Isso “seria importante para você alçar o animal a uma categoria onde esse fato fosse mais explicitado”, reforça ela.

No Brasil, a questão é sensível não apenas cultural, mas economicamente. Em 2018, segundo os números do Sistema de Estatísticas de Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foram vendidas 844 mil toneladas de proteína bovina, 8,3% a mais que no mesmo período em 2017.

“Atualmente, existem mais bois do que seres humanos no Brasil, são mais de 212 milhões de cabeças de gado”, reitera Ivanira, ao levantar a dúvida de que, com isso em mente, “como podem as preocupações éticas em relação ao bem-estar animal serem acomodadas dentro de um conjunto de processos econômicos dominado por cálculos de custos e preços?”.

Para discutir essa e outras questões, como sustentabilidade ambiental, saúde humana, saúde laboral, veganismo e o sofrimento animal não sendo reconhecido, a disciplina disponibilizará 100 vagas. “A matéria é aberta para a USP inteira, já que a ideia é você ter um universo de pessoas de vários ramos do conhecimento”, afirma a pesquisadora. A previsão é que ela seja oferecida no 2º semestre deste ano.

Apaixonada pelo assunto, ela acredita que a discussão pode ser enriquecedora para todos os envolvidos. “Independente de você ser um abolicionista, que vá pelo caminho radical do veganismo e não aceite nenhum tipo de exploração animal, ou mesmo que você seja bem-estarista [que defende o bem-estar dos animais, ainda que eles sejam explorados para consumo] qualquer um dos lados pode entender que a gente precisa caminhar muito para tornar a vida desses animais melhor”, finaliza.

 

Fonte: Jornal da USP