Minha relação com os animais sempre foi dentro do padrão: eles lá e eu aqui. Cachorro sempre fora de casa, com a missão de latir ou morder qualquer desavisado que se aproximasse. As galinhas, para fornecer ovos e o frango ensopado, aos domingos. Existiam os animais da mata que aprendi a identificar ou evitar: abelha, lagarta de fogo, marimbondo, formiga etc. Animais para comer, para proteger, para preservar, para pesquisar, para entreter, para visitar no zoológico. Estar dentro do padrão, nesse caso, significava aceitar essas hierarquias.

Já adulta casada vieram os dois filhos e eu repeti com eles o que aprendi na minha família. Estava tudo bem e dentro do esperado pela tradição, cultura, família, mídia, escolas, igreja, livros. O fluxo seguiria com meus filhos já adultos fazendo o mesmo com os seus filhos. Tudo dentro do esperado.

Até que um dia, eu estava preparando o almoço e o meu filho chegou. Na época, ele tinha 17 para 18 anos e eu, por volta de 42 anos. Percebi que chegou mais quieto, foi direto para o quarto. Passou um pouco, chegou à cozinha e soltou a frase: “Mãe, se eu me conheço, nunca mais comerei carne”. Esse foi o gatilho! E eu não tinha a menor ideia do que fazer com aquilo. Meu cérebro vasculhou todas as minhas memórias na busca de qualquer informação que me conectasse àquela conversa estranha. Não encontrando nada, passei a fazer perguntas: Por quê? O que aconteceu?

Ele havia acessado um vídeo sobre abatedouro de porcos. Daquele momento em diante nós dois vivemos o parto reverso. Ele, como filho, me fez nascer ao abrir as cortinas pesadas e trazer à luz aquilo que estava ocultado pela indústria animal, como também as cenas do cotidiano, da cultura e do entretenimento e que eu sempre considerava normal. Foi como ganhar óculos potentes, com a capacidade de iluminar a existência e a realidade dos animais não humanos que até então eu ignorava ou desconhecia por completo. Vieram junto com as novas lentes, novos ouvidos que me permitiram discernir sons de lamentos e pedidos de socorro. Foi fácil chegar à conclusão de que o nosso mundo é o inferno para os animais e, nós, os seus demônios.

Crescia dentre de mim a força e a convicção de que eu não poderia mais compactuar com esse sistema. Fui diminuindo o consumo de carne, aprendendo a ler rótulos e buscando a procedência daquilo que comprava. Sempre cozinhei e isso facilitou a adaptação, mas foi preciso abandonar meus livros de receitas, reescrever novas, reaprender a comer, reeducar o paladar e a estudar sobre os nutrientes. Diversifiquei as cores e sabores das minhas refeições e ganhei em saúde e disposição.

Esse processo foi lento, consciente, racional e empático. Tudo isso, dentro do meu tempo e das minhas possibilidades. E essa é a definição de veganismo: “a filosofia/ modo de vida que busca excluir – na medida do possível e praticável – todas as formas de exploração e crueldade com os animais para qualquer propósito”. Apesar de ser um ‘ismo’, veganismo não é uma ideologia definida pelo que o indivíduo faz, e sim pelo que ele não faz ou se abstém de fazer. Ser vegano significa simplesmente não apoiar a exploração animal. Esse é o princípio. Já o vegan, ou vegano/vegana, é o indivíduo que segue ou está de acordo com essa filosofia. Não é uma religião, não tem líderes, não tem escritório, não tem regra, régua ou escala para saber quem é puro ou impuro. É, no meu modo de entender, uma experiência única, pessoal, intransferível, contudo, pode ser compartilhada.

Infelizmente, nesses últimos 20 anos, a indústria acelerou e aperfeiçoou a técnica para extrair o máximo do corpo dos animais. Para esses, temos autorização legal e subsídios para avançarmos sobre seus corpos, territórios e ambientes. Anestesia ética para separarmos os filhotes de suas mães, inseminar (artificialmente e anualmente) as fêmeas, alterarmos o seu formato, reduzirmos a sua locomoção e aumentarmos a sua produtividade.

Atualmente a maioria dos grandes animais de nosso planeta vive em fazendas industriais. Persistimos considerando as outras espécies como coisas passíveis da nossa exploração e domínio. A propaganda e o marketing convencem e criam uma dependência cada vez maior dos produtos de origem animal e associam de forma unilateral e reduzida, proteína à carne e cálcio ao leite. A notícia boa é que boas informações estão disponíveis na internet e documentários potentes. Pessoas com autoridade no campo nutricional e ético estão se posicionando e, mais e mais pessoas estão acessando esses conteúdos e em processo de transição. O mercado já entendeu que será preciso diversificar e incluir.

Muitos acessam esse universo pela via dos impactos ambientais ou da saúde, o que é válido, mas não é a motivação primeira que leva alguém a ser vegano/a.

Sempre escuto que a comida vegana é cara. Em alguns casos é verdade, mas também pode ser mais acessível do que uma alimentação não-vegana. Em outras palavras, se alguém decidir seguir a alimentação mais barata possível, e adequada nutricionalmente, provavelmente chegará a uma alimentação totalmente (ou quase totalmente) vegetal. Comida de origem vegetal é aquela que encontramos no sacolão, que é feita em casa, mas também é aquela oferecida em restaurantes, ou dos industrializados e ultraprocessados dos supermercados. Vegano não é sinônimo de saudável, mas daquilo que não tem ingrediente de origem animal. Existem vegano natureba e vegano da Coca-Cola e Batata Frita. Mais uma vez, não há script a ser seguido.

Fazer a escolha de ser vegana incomoda, mesmo que eu não fale nada. É como se você estivesse saindo do combinado e estragando a festa. Nunca fui tão questionada e, algumas vezes, alvo de falas que tentavam ridicularizar essa escolha. Quanto mais era bombardeada com perguntas, mais eu lia e me interessava pelo assunto. Quem quer fazer esse percurso precisará lidar com essas tensões, que são positivas e nos mobilizam para estressarmos os fundamentos de nossas convicções. É preciso ser paciente.

Por fim, cabe um conselho. Se no seu convívio próximo têm pessoas indo nessa direção, não as tenha como uma ameaça. Se for seu filho, não o desmobilize. Esse movimento só fará bem para as pessoas, para o planeta e para os animais. Afinal, nós não precisamos e eles não merecem. Eles não querem muito de nós, mas têm seus interesses e necessidades. Lutam pela vida, pela sua integridade física e por sua liberdade, assim como nós, animais humanos.

Aleluia Heringer Lisboa – 04 de outubro de 2024 – Dia de São Francisco e dos Animais.

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Doutora em Educação (UFMG). Autora do Guia “Animal não Humano: Presente!”, produzido pela CEDA. Atualmente é diretora de ASG da Rede Lius Agostinianos.