Os dados, apesar de alarmantes, não conseguem traduzir o volume real do tráfico de animais silvestres, por conta da subnotificação

 

rancisco era só um bebê quando foi encontrado sozinho na região serrana do Rio de Janeiro, em 2018. Não se sabe ao certo, mas acredita-se que perdeu a mãe dias antes. Fora morta. De alguma forma, ele se transformou em um sobrevivente do crime. Acontece que Francisco, apesar de ter um nome considerado relativamente popular pelo IBGE, não pode ser considerado um tipo comum. Na verdade, ele faz parte de um grupo que aos poucos vem desaparecendo no Brasil: é uma onça-parda, segundo maior felino do país, atrás apenas da onça-pintada. Uma espécie em extinção na fauna brasileira.

Assim como ele, a Silvinha, a Lourdes e o Peri — que são, respectivamente, uma jiboia, uma capivara e uma preguiça-de-três-dedos — se recuperam com ajuda do Instituto Vida Livre, uma organização que desenvolve trabalhos de proteção e reabilitação da fauna silvestre. A grande maioria vem de ações realizadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Esses são nomes de apenas alguns animais vítimas de tráfico, caça ou maus-tratos. Vítimas também da priorização do capricho humano em detrimento do bem-estar de um animal. O país com a maior diversidade de fauna — e dono de 20% de toda a biodiversidade do mundo — é também um dos que mais a desrespeita.

Segundo a Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), a estimativa é de que todo ano 38 milhões de espécimes sejam retiradas da natureza brasileira. Vítimas do tráfico e da desigualdade social no Brasil, tornam-se bombas-relógio ecológicas que podem afetar todo o equilíbrio do planeta.

Estamos vivendo hoje um momento de pandemia. E possivelmente o vírus começou em um comércio de animais silvestres na China. Mas as pessoas falam disso como se fosse exclusividade, uma peculiaridade da cultura chinesa. Só que a gente mora em um dos países que mais trafica animais no mundo, que tem grandes pontos de comércio ilegal de animais, feiras, mercados… E sem qualquer controle sanitário.

Segundo dados coletados por Ecoa com o Ibama, o número de resgates de animais silvestres sofreu uma queda em 2019 se comparado a anos anteriores. Foram registradas em 2017 um total de 1224; 1402 em 2018 e 1121 no ano passado. Fatores como resgates de animais em cativeiros, caça ou tráfico, por exemplo, somam-se para gerar a quantidade final contabilizada pelo órgão federal. Porém, obviamente, só é possível computar os que foram resgatado. Os dados de órgãos oficiais de fiscalização, então, não conseguem traduzir o volume real do tráfico de animais silvestres.

“Os números de resgates da fauna silvestre no Brasil não chega nem a meio por cento do que de fato é traficado”, afirma Dener Giovanini, coordenador geral da Renctas. Coletando informações de batalhões de Polícia Florestal, do Ministério Público Federal, Polícia Federal, Ibama, de ONGs brasileiras e internacionais, universidades e centros de pesquisa, a Renctas lançou em 2001 o Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, trazendo uma estimativa do que possivelmente ocorre no escuro do tráfico. A grande dificuldade de acesso a números consolidados passa também justamente por essa quantidade de instituições responsáveis por fiscalização.

Juancho Torres/Anadolu Agency via Getty Images

“É difícil saber o tamanho do tráfico no Brasil sem ter a compilação e análise de dados oficiais. Para isso, seria preciso que houvesse uma padronização nos registros. No Brasil, você tem os Estados, com secretarias do meio ambiente, registrando de um jeito. Tem órgãos federais, como Ibama e ICMBio registrando seguindo outra metodologia. E ainda tem as polícias ambientais fazendo de outra forma”, explica Dener.

Ele também apontou outro vilão que nos últimos anos tem dificultado ainda mais o combate ao tráfico de animais: as redes sociais. O que antes acontecia pontualmente em espaços físicos como feiras livres em pequenas cidades do interior, agora tem uma vitrine universal na internet. “Mesmo agora, durante o período de quarentena, não houve diminuição dessas vendas online de animais”, diz. A Renctas vem monitorando redes de tráfico também no ambiente virtual.

Segundo Dener, o plano é lançar um novo estudo com os dados que a organização vem coletando virtualmente. Com exclusividade para esta reportagem de Ecoa, ele adianta um número assustador: em um período de cinco meses, foram 3,5 milhões de mensagens trocadas apenas em grupos de WhatsApp envolvendo tráfico de animais silvestres. Todas já foram encaminhadas para o Ministério Público.

Mais de 80% dos animais traficados no Brasil são aves. E aqui há um consenso entre os dados de diferentes instituições. O Ibama confirma que trabalha com a mesma porcentagem. São os pássaros os mais traficados. Os motivos são diversos: desde o hábito do brasileiro de ter passarinhos presos em gaiola em casa até a beleza do canto e das plumas das aves que passam a ser exploradas em diferentes níveis.

“Existem atividades que alimentam esse mercado. Ganha-se bastante dinheiro com torneio de canto de passarinho, com rinha de aves, por exemplo”, explica Juliana Machado Ferreira, doutora em biologia pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora geral da Freeland Brasil, organização cuja missão é a conservação da biodiversidade por meio do combate ao tráfico de espécies silvestres.

Danilo Verpa/Folhapress

Afinal, que animais são esses?

A biológa Juliana Machado Ferreira, diretora geral da Freeland Brasil, explica as diferenças entre animais silvestres nativos, exóticos, invasores e animais domésticos.

Silvestre nativo vs. exótico

“É o que tem área de ocorrência dentro de determinada fronteira. É o que tem área de ocorrência natural no território brasileiro ou passa algum momento do seu ciclo de vida por aqui. Portanto, os exóticos são os que não são nativos.”

Invasor

“É o que se tira da área natural de ocorrência dele e se coloca em outra. Por exemplo, o galo da campina da caatinga foi trazido para o Sudeste para ser mantido em cativeiro, mas escapou e começou a se reproduzir. Assim, acabou se estabelecendo em uma região que não era a dele. A espécie invasora é aquela que começa a colonizar fora da área de ocorrência natural. Dentro disso, temos os invasores nocivos, que passam a competir com o animal nativo por recursos, que não tem predadores naquela região nova, por exemplo.”

Doméstico

“São espécies que foram selecionadas de uma forma artificial pelos seres humanos ao longo de muitas gerações. Esses animais sofreram alteração de aparência, fenotípica. E também na genética. Portanto, eles não têm mais uma função ecológica na natureza, os silvestres têm.”

A máfia e a megalomania

Nomes conhecidos pelo grande público tinham ou já tiveram animais silvestres. O ex-pugilista Mike Tyson possuía os famosos tigres brancos. O narcotraficante Pablo Escobar chegou a criar um zoológico na Colômbia. Justin Bieber se envolveu em problemas na Alemanha ao entrar no país com seu macaco capuchinho. Por aqui, Twelves, o macaco-prego do cantor Latino, virou até celebridade.

Antropólogo e membro do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias (NEAAT), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Caetano Sordi diz que, apesar de existir gente que realmente se importa e desenvolve amor pelos animais, também é possível dizer que essas relações se dão a partir da ideia de que nós, seres humanos, estamos no topo da cadeia evolutiva, o que traz a ideia de que temos ou podemos ter o domínio de outras espécies.

Danilo Verpa/Folhapress

“Podemos pensar que um desses motivos se baseia na concepção de dominação da natureza que o ocidente tem. É essa ideia de que podemos transformar a natureza em algo para suprir nossas necessidades. Então, se tem essa ideia distorcida de que, se estamos no topo, temos o direito de utilizar esses animais e fazer o que quisermos com eles. Existe essa pulsão que as classes mais ricas têm de querer ter grandes quantidade de animais de forma ostentatória. Os exemplos são vários na cultura popular: de Pablo Escobar até as pessoas daquela série”, diz.

A série em questão é “Tiger King”, ou “A Máfia dos Tigres”, que narra a história real de alguns dos maiores criadores de grandes felinos dos Estados Unidos. Joe Exotic, um cowboy gay de lápis no olho e mullet loiro é o personagem principal. Em determinado momento, ele diz ter cerca de 176 tigres morando em seu quintal. Em outra cena, Doc Antle, outro tutor de tigres, aparece montando seu elefante pessoal. Milhares de pessoas frequentam os zoológicos privados dos dois para assistir aos animais, e principalmente, tirar selfies.

A princípio a série choca por um dado: existem mais tigres em cativeiro nos Estados Unidos do que soltos no resto do mundo. Aos poucos, a narrativa muda de tom. Tentativa de assassinato, disputas por poder e até uma candidatura à presidência viram pontos no roteiro recheado de acontecimentos bizarros e intrigantes. Os animais deixam de ser o foco. E, por isso, a série já recebeu diversas críticas. Em vez de aproveitar a oportunidade para discutir assuntos sérios, como o bem-estar animal, transformou em espetáculo a vida dos personagens.

Porém, o antropólogo Caetano Sordi afirma que a série é fiel à realidade envolvida no tráfico da fauna silvestre: os que o praticam pouco ou nada têm de interesse nos animais em si. O foco é a conquista humana.

“Diz muito sobre a vaidade humana. Principalmente no caso de colecionadores, tudo não passa de vaidade. O animal se transforma em troféu. É como se fosse uma disputa de carro: quem tem o carro mais bonito? Quem tem o mais possante e mais veloz? Essas pessoas são levadas a esse tipo de necessidade de mostrar poder e acabam se utilizando desses animais para suprir alguma carência, alguma deficiência emocional que tem”, afirma o coordenador geral da Renctas

Os javalis

Acontece que para conseguir manter um recinto com diversos animais custa caro. Muitos desistem no meio do caminho. Um caso conhecido e estudado pelo antropólogo Caetano Sordi foi o do aristocrata argentino Aarón de Anchorena e a relação dele com os javalis. “Esse é um bom exemplo de outro aspecto do comportamento humano tentando exercer poder: a ideia de reforma da natureza”, diz.

Hart Preston/The LIFE Picture Collection via Getty Images

No caso citado, o aristocrata inseriu javalis, que são oriundos de regiões europeias, em sua chácara no Uruguai para praticar a caça ao animal. Tempos depois, o negócio não foi para frente. Alguns animais acabaram fugindo do espaço e cruzaram fronteiras. Uma delas, a do Brasil, entrando pelo Rio Grande do Sul. O país viu uma nova introdução do javali, dessa vez proposital, quando nos anos 90 a moda gastronômica da vez era comer carnes “exóticas”.

“Só que esse é um animal musculoso, de pouca carne. Por não ter rendimento, começaram a cruzar os javalis, que são porcos da vida selvagem, com os porcos domésticos, aí passamos a ter esse híbrido bizarro que é o javaporco. Que também acabou não sendo muito rentável, e muito criados acabaram soltando na natureza. Assim, começam a desencadear um processo de invasão biológica”, diz o pesquisador.

“As pessoas trazendo espécies novas, seja por fins de caça, seja para montar zoológico, seja por curiosidade, comprando do comércio ilegal? E aí um roteiro muito clássico é o seguinte: por esses animais não responderem às expectativas, ou as pessoas não darem conta de cuidar, acabam sendo soltos na natureza. Tomam o espaço das espécies nativas e não têm predadores. Aí tenta-se soltar esses predadores na natureza para tentar equilibrar, ou se libera a caça… As soluções oferecidas para controlar a proliferação de espécies invasoras nocivas acabam piorando a situação, em alguns casos”, explica Caetano.

Uma cadeia de sofrimento

Existe outra tendência de preferência entre compradores de animais silvestres: quanto mais rara a espécie, melhor. A obsessão pelo exclusivo, a oportunidade de poder acessar e ostentar bens caros ou escassos também se estende para a compra e venda da fauna brasileira.

“Quanto mais ameaçada de extinção a espécie, mais procurada ela se torna e maior é o valor que esse animal alcança no mercado ilegal. É o que chamo de ‘ciclo da morte’. Ou seja, quanto mais ameaçado ele está, mais caro é comercializado, e mais procurado ele se torna. E quanto mais procurado esse animal for, mais ameaçado de extinção ele estará. É um ciclo vicioso”, explicou Dener Giovanini, coordenador geral da Renctas.

Juancho Torres/Getty Images

Um levantamento realizado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) mostrou que das 12.256 espécies da fauna brasileira analisadas, 1.173 estão ameaçadas de extinção. A caça desses animais para fins de tráfico ou subsistência é a segunda principal causa. A primeira ainda é a perda de habitat provocada por atividades humanas, como agronegócio e queimadas.

Por terem as rodovias federais como principal rota de tráfico de animais, é preciso conseguir esconder os animais de diversas formas. A Renctas elenca algumas delas: pequenos animais dentro de malas ou em carros pequenos, escondidos em porta-malas ou até nos forros dos bancos. Também existem os que são transportados contrabandeados em containers. Não existe qualquer preocupação com o bem-estar do animal. Por isso, a estimativa é de que a cada dez animais capturados, apenas um sobreviva. A maioria morre durante o transporte ou após chegar ao seu destino devido a traumas psicológicos ou ferimentos físicos.

“Para os traficantes, os animais são simples mercadorias. E o que é pior: uma mercadoria barata, que se morrer, tanto faz, já que ele pode pegar na mata de graça novamente. Por isso, é preciso mostrar para as pessoas, contar para elas as histórias daqueles animais que elas estão querendo comprar. Talvez sabendo de toda a cadeia de sofrimento, ela desista de ter um animal silvestre”, diz Dener.

Uma questão socioambiental

Há um grande obstáculo para quem luta para acabar com essa atividade. O tráfico da fauna brasileira representa uma enorme possibilidade de lucro. À época em que lançou o Relatório, a Renctas trabalhava com um valor de R$ 2,5 bilhões movimentados pelo comércio por ano. Hoje, segundo Dener, a quantia deve estar na casa dos R$ 3 bilhões. A vantagem para traficantes vem no pouco que se é gasto com a captura desses animais. Quando não roubam os animais da natureza, pagam alguém para fazer.

Os contratados sempre são pessoas que estão em zonas rurais, empobrecidas, sem acesso a direitos básicos. Os pagamentos costumam ser pífios se comparados ao valor de revenda dos animais no mercado. “Existem animais que são capturados na região Norte, como a tartaruga, e as pessoas que capturam são pagas um valor entre R$ 1 e R$ 2. Repassam para os traficantes que vendem por R$ 200, R$ 300 em São Paulo”, conta o coordenador geral da Renctas.

Danilo Verpa/Folhapress

É costume também a prestação desses serviços em troca de alimentos ou produtos necessários. Assim, o tráfico de animais torna-se um problema social. A bióloga e diretora geral da Freeland, Juliana Machado, explica que é necessária a presença de fiscalização do Estado não apenas pela questão ambiental e para assegurar o bem-estar do animal, mas também para tomar providências quanto às necessidades relacionadas ao bem-estar das pessoas que residem próximas aos lugares onde são feitas as capturas.

“Nós fazemos um trabalho em um local, com as pessoas daquele lugar, mas aí os traficantes começam a comprar em outro local. E por quê? Porque essas também são questões sociais”, ressalta. “É preciso olhar para essas pessoas que estão morando em área rural e precisam de alguma fonte de renda regular. O Estado precisa pagar essa conta na forma de saneamento básico, educação, capacitação e cursos profissionalizantes, atividades econômicas que não sejam detrimentais ao meio ambiente, à saúde.”

Equilíbrio sanitário do planeta em xeque

A relação entre humanos e animais silvestres comercializados de forma ilegal, além dos riscos óbvios e já citados na matéria, pode ser uma bomba-relógio pronta para estourar a qualquer momento e comprometer o equilíbrio sanitário do planeta. Não é preciso ir longe para citar exemplos, infelizmente.

Possivelmente, o mundo vive hoje a consequência da interação entre seres humanos e animais retirados do habitat natural. Isso porque a hipótese mais trabalhada nos últimos meses é a de que o novo coronavírus tenha surgido em um mercado onde se comercializa animais vivos ou mortos em Wuhan, na China.

“Os cativeiros são reservatórios de doenças, tanto as conhecidas quanto as que não sabemos ainda. Salmonella, hantavirose, leptospirose, raiva, clamídia… São inúmeros os exemplos de moléstias mais ou menos graves. O que aconteceu com o ebola, por exemplo, ou a primeira Sars, e agora nessa, com o novo coronavírus. São zoonoses”, explica a bióloga Juliana Machado Ferreira. As zoonoses, segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), são “doenças ou infecções que naturalmente são transmitidas de animais vertebrados para humanos”. A organização, por enquanto, reconhece 200 doenças nessa categoria.

Além de possuírem inúmeros patogênicos que no futuro podem acarretar em problemas sanitários, existem os problemas ambientais de se tirar indiscriminadamente esses animais de seus habitats naturais. Juliana relembra: ecossistemas não conseguem se regenerar sem todos os componentes que fazem parte dele. E isso inclui os animais silvestres.

“Esse tráfico causa a chamada defaunação, que é a redução do número de espécies e indivíduos na fauna. Sem esses animais, não é possível realizar a polinização, a dispersão de sementes, por exemplo. Você tem uma alteração no nível de paisagem, alteração dos cursos de água, e a perda da capacidade de armazenar carbono em florestas tropicais. As consequências são inúmeras”, diz Juliana.

E como tudo isso começou?

Segundo os especialistas, parte das pessoas que compram ou vendem animais silvestres até entendem que estão fazendo algo ilegal, mas não compreendem o problema que isso representa, visto que não vem de hoje a ideia de ter esses animais em casa. Você provavelmente já conheceu alguém com pássaros silvestres em casa. Ou um papagaio. Se bobear, você mesmo já teve alguns desses animais. Mas quando essa cultura se instalou no Brasil?

Instituto Vida Livre

A resposta vem de longe: a partir do momento em que portugueses invadem o país para colonizar, em 1500. Antes disso, os povos indígenas já possuíam a prática de incorporar animais silvestres às aldeias. Porém essa relação era dada de forma respeitosa. Quem explica é o antropólogo Felipe Vander Velden, autor do livro “Jóias da floresta: antropologia do tráfico de animais” (Editora da UFSCar, 2018)

“Os povos indígenas, tanto na América do Sul como na do Norte, entendiam e entendem que aqueles animais têm um modo de vida que é próprio daquelas espécies. E que a relação com eles devia ser sempre diplomática. A relação com essas espécies que vivem fora do domínio humano é perigosa, tem que ser pensada sempre como uma certa diplomacia”, diz Velden.

Segundo o antropólogo, existe até uma argumentação entre autores que estudam o tema de que foi ao observar essa relação entre povos indígenas e animais silvestres que europeus desenvolveram o costume de ter animais em casa. Muitos foram os animais brasileiros levados para a Europa na época. A mestre em direito ambiental Márcia Fajardo Cavalcanti, por exemplo, descreve em um artigo esse momento como o início do comércio da fauna silvestre no Brasil.

Os portugueses, encantados com animais brasileiros, passaram a levar para suas terras algumas espécies. Como muitos eram desconhecidos dos povos europeus, existia uma cultura de se vangloriar por ter posse de animais tão exóticos, o que passou a gerar um grande interesse lá fora. “Consequentemente, os espécimes da fauna silvestre passaram a ser expostos e comercializados nas ruas. O comércio de animais logo se transformou numa atividade bastante lucrativa, o que incentivou o movimento de viajantes especializados na captura de animais”, afirma Márcia. Desde então, estabeleceu-se no Brasil a compra e venda desses animais.

Legislação demorou quatro séculos

Apesar de a retirada de espécimes da natureza acontecer desde a colonização, a regulamentação que tenta controlar o comércio de animais só surgiu em 1967, por meio da Lei de Proteção à Fauna, de n. 5197. Passou a ser proibido caçar, capturar, comercializar e criar qualquer animal da fauna silvestre sem autorização do Estado. Essa lei tornou todos os animais presentes na natureza um bem do Estado brasileiro.

Quem for pego em infração pode pagar uma multa de R$ 500, se o animal não estiver em extinção, ou R$ 5 mil, caso esteja. Segundo dados do Ibama, os estados com maior número de multas aplicadas por apreensão são: Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro. Quatro deles compõe o sudeste brasileiro, região com maior demanda do tráfico de animais oriundos do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

A legislação, porém, não se mostra eficaz para os especialistas ouvidos por Ecoa. E por diferentes motivos. O principal deles é o crime de tráfico de animais no Brasil ser considerado com menor potencial ofensivo, o que faz poucas pessoas pagarem judicialmente.

“Isso permite a transação penal, que é um acordo feito com o infrator, que não envolve o infrator admitindo culpa, e tendo acesso a penas alternativas, como pagamento de cestas básicas ou serviço comunitário”, conta Juliana Machado. “Além disso tem a tipificação do crime. Eles trazem muitos verbos: quem vende, quem transporta, quem tem em cativeiro? A lei não faz distinção entre a pessoa mal informada que tem um papagaio em casa do traficante recorrente”, completa.

Resgate e reabilitação na natureza

Os animais resgatados pelo Ibama muitas vezes são enviados majoritariamente para o Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), de responsabilidade do órgão federal. Organizações mais recentes como o Instituto Vida Livre, que desde 2015 atua no Rio de Janeiro, até as mais antigas como a Associação Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos, que desde 1991 realiza trabalho de reabilitação de animais em Cotia (SP), são grandes aliados para incorporar animais aos determinados lugares de origem.

“Nós já atendemos mais de 9 mil animais. Eles são levados para o centro de triagem do Ibama em Seropédica. Lá, nós pegamos esses animais e levamos para áreas de soltura, onde eles ficam um tempo nos recintos, se reabilitando, fazendo exames. Cada demanda vai exigir um cuidado e tempo diferente”, conta Roched Seba, fundador do Instituto Livre.

O caminho para a reabilitação desses animais é longo. Alguns, porém, nunca mais conseguem voltar para seus habitats. Ou por que esses lugares já não existirem mais devido a desmatamento, queimadas e perdas de ecossistemas, ou por não conseguirem se adaptar à vida selvagem sem depender de ajuda humana.

“Foi o que aconteceu com o Francisco, a onça-parda. Ele perdeu a mãe muito cedo, não sabia nem caçar. Mas tivemos algumas outras dificuldades porque nenhuma instituição queria ficar definitivamente com ele. Ele estava vivendo em um cubículo, até que, finalmente, depois de muita luta e ajuda nós conseguimos um recinto espaçoso para ele morar”, conta Roched.

Danilo Verpa/Folhapress

Tanto a Freeland Brasil quanto a Renctas também desenvolvem trabalhos de conservação da fauna brasileira, mas em outras esferas. Juliana Machado explica que a Freeland trabalha em três frentes: educação e conscientização com intuito de reduzir a demanda de espécies silvestres, apoio a agências de combate ao crime com desenvolvimento de pesquisas e capacitação de servidores públicos e, por fim, apoio técnico para criação de projetos de lei.

Já a Renctas possui quatro eixos estratégicos, que passa pela educação ambiental, apoio a pesquisas, desenvolvimento de conhecimento por meio de treinamentos e articulação com diversos atores da iniciativa pública, privada, terceiro setor e sociedade civil.

“Não existe uma percepção por parte da sociedade de que isso [tráfico de animais silvestres] é um crime sério. O Estado está falhando em passar essa mensagem para a sociedade. Falta uma conscientização da população sobre os efeitos em cascata que a retirada dos animais da natureza em grande volume acarreta. Não existe uma clareza sobre a importância de ecossistema saudável. É só olhar a situação que a gente vive hoje”, afirma Juliana Machado Ferreira, bióloga e diretora geral da Freeland Brasil.

Como ajudar?

Todas as organizações que compartilharam suas experiências e conhecimento para essa reportagem são sustentadas com auxílio da sociedade civil. Se você se sensibilizou com o problema do tráfico de animais silvestres no Brasil e gostaria de ajudar quem está na linha de frente trabalhando por essa causa, é possível fazer doações.

Freeland Brasil

Organização sem fins lucrativos que existe em oito países e tem como missão lutar pela conservação da biodiversidade. No Brasil, atua com educação ambiental, capacitação e ajuda técnica a agencias de combate ao tráfico de animais silvestres e formação de políticas públicas para preservação da fauna. Para doar, acesse o site da Freeland.

Instituto Vida Livre

Organização sem fins lucrativos que desde 2015 desenvolve projetos de reabilitação e soltura de animais vítimas de maus tratos e tráfico. O Instituto Vida Livre está com uma vaquinha online para ajudar na manutenção de suas atividades durante a pandemia do novo coronavírus.

Rancho dos Gnomos

Associação civil sem fins lucrativos em Joanópolis (SP) que atua desde 1991 na preservação, conservação, recuperação de animais silvestres nativos, exóticos e de animais domésticos. O santuário aceita doações via PagSeguro ou boleto bancário.

Renctas

Organização não-governamental de Brasília (DF). Desde 1999, trabalha com educação ambiental, apoio à pesquisa e conservação, desenvolvimento do conhecimento e articulações com iniciativas do setor público, privado, terceiro setor e sociedade civil para combater o tráfico de animais. A rede possui o projeto Amigos da Fauna para cadastro de associados com doações anuais e valores a partir de R$ 50.

Produzida e revisada, respectivamente, pelas jornalistas Paula Rodrigues e Fernanda Schimidt, a reportagem acima foi publicada originalmente pelo portal UOL.

 

Fonte: ANDA