Aleluia Heringer Lisboa
Aleluia Heringer Lisboa
Drª em educação.
Líder de sustentabilidade do Centro Agostiniano de Ecologia Integral.

Um aspecto da pandemia pouco explorado é o fato de estarmos confinados devido à forma equivocada como nos relacionamos e confinamos as outras espécies. Vivemos em uma casa comum; entretanto, procedemos como se a nossa espécie fosse a única com direitos.

Dizemos e cantamos que “tudo está interligado, como se fôssemos um”, porém, somos seletivos se cortamos as interdependências que nos conectam com o mundo natural. Vemo-nos fora e acima da teia da vida. Como bem diz o Papa Francisco, “esquecemos que somos Terra” e, acrescento, esquecemos que somos animais, animais humanos. Somos, nesse sentido, “especistas”, expressão cunhada pelo filósofo americano Gary Francione. Nossa ética é tradicional, construída pelo homem e para o homem.

Sabemos que o novo coronavírus, que pode causar infecções respiratórias graves, é uma zoonose, ou seja, uma doença que começou em animais infectados e foi transmitida de animais para as pessoas. A culpa não é dos animais, mas da forma como os manipulamos. Os mercados abertos da China misturam alimentos, animais silvestres e domésticos, vivos ou abatidos na hora, na frente do freguês. Ambiente que favoreceu a contaminação de humanos pelo, agora famoso, SarsCoV-2, agente causador da COVID-19. Os tradicionais mercados públicos de nossas cidades fazem algo semelhante ao vender pássaros, galinhas, cachorros e tartarugas em espaços exíguos, insalubres, sujos e de grande aglomeração, junto com verduras, queijos, carnes etc.

Em 2013, relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) já denunciava que sete em cada 10 doenças surgidas desde a década de 1940 eram de origem animal. A mistura de nossa ação predatória em relação aos ecossistemas, o confinamento de animais em grande escala e as grandes aglomerações nos centros urbanos tornaram o ambiente favorável para a seleção de novas mutações e o aparecimento de novas doenças para as quais não há remédios ou vacina se nos deixam, a cada dia, mais vulneráveis.

Segundo Yuval Noah Harari, no livro Homo Deus, “durante milênios, o Homo sapiens tornou-se o mais importante fator individual na mudança da ecologia global”. Ele traz um dado espantoso sobre a atual composição da biomassa global de animais de grande porte: 100 milhões de toneladas de grandes animais selvagens; 300 milhões de toneladas de humanos; e 700 milhões de toneladas de animais domesticados. Os princípios de organização dos ecossistemas não permitiriam essa bizarrice de uma espécie se multiplicar ad infinitum, sem que processos naturais fizessem a correção. Nossa curta visão e critérios que só enxergam a natureza e as espécies animais com a lente da utilidade e lucro, ao contrário, dão o nome para isso de desenvolvimento e progresso. Precisamos nos atentar para o confinamento de animais pela indústria da carne, que abate bilhões de animais por ano. Ou que o rebanho bovino brasileiro tem mais cabeças que toda a população brasileira.

Nesse reencontro com aquilo que alimenta o nosso corpo, deveríamos nos perguntar: de que é feito isso e aquilo? Como é produzido?. Ficaremos surpresos ao ver que, da hora em que acordamos até a hora em que vamos dormir, tudo aquilo que comemos tem algum ingrediente de origem animal. Devemos nos perguntar: é preciso?. Esse ato automático de levar o garfo até a boca, para muito além do gosto pessoal, cultura ou tradição, em tempos de pandemia, passa a ser um gesto sanitário, ecológico, político, ético, humanitário, social e, por que não, saudável.

O texto acima foi originalmente publicado pelo jornal Estado de Minas e pela ANDA