No último mês de julho, a denúncia de maus-tratos em um criadouro clandestino de cães da raça yorkshire, na cidade de Divinópolis, localizada a 125 quilômetros da capital mineira, não só reforçou a crueldade por trás do comércio de animais de estimação, como também transformou-se na primeira representação criminal do país com os pets figurando como autores da ação. De coisas e objetos, como eram tidos juridicamente no Brasil, os animais foram alçados a sujeitos de direito, podendo reivindicar perante a Justiça reparação por parte de seus agressores quando seus direitos fundamentais forem violados. A discussão atual, no entanto, gira em torno de quem teria legitimidade para representar o animal em juízo, já que claramente não podem fazê-lo por si mesmos.
O tema polêmico tem agitado os tribunais em todo o país. “O Decreto lei n° 24.645, de julho de 1934, de autoria de Getúlio Vargas, fala expressamente que os animais podem ir a juízo, quando assistidos pelos membros do Ministério Público, a sociedade protetora dos animais ou tutores”, explica a advogada animalista Giseli Laguardia Cheim. Coordenadora do Grupo de Extensão em Ética Animal da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), também é presidente da recém-fundada Associação Nacional de Advogados Animalistas (ANAA), composta por profissionais de diversos estados. Para ela, o único obstáculo para que os animais sejam vistos como autores nas ações judiciais, tem sido uma visão antropocêntrica dos magistrados. “Tudo tem sido feito com o amparo da lei, baseado na legislação brasileira.”
Em Divinópolis, a Sociedade Protetora dos Animais (SPAD) conseguiu a guarda provisória dos oito animais resgatados em situação de maus-tratos no canil clandestino. “Sendo eles as principais vítimas, eles mesmos pedem justiça”, diz Adriana Sbampato, presidente da ONG. A tutora dos animais responderá por crime de maus-tratos em ação civil – a título de indenização – e ação criminal, com pena prevista de dois a cinco anos de prisão, sem direito a fiança. Em se tratando de Direito Animal, o Brasil se destaca. “Nosso país possui uma estrutura legal que praticamente não se encontra em outras nações”, diz Vicente de Paula Ataide Junior, professor e juiz federal no estado do Paraná, especialista em direito animal. Segundo ele, existem algumas leis e precedentes nos tribunais brasileiros que surpreendem. A começar pela Constituição Federal de 1988, uma das primeiras no mundo a proibir expressamente a crueldade contra os animais. A segunda grande mudança teria ocorrido em 2016, quando o Supremo Tribunal Federal proibiu a vaquejada. “Não foi o resultado do julgamento o mais importante. Foi a maneira como os ministros colocaram a situação, utilizando pela primeira vez o vocabulário do direito animal.”
Em 2019, a Lhasa apso Mel, atualmente com 6 anos, foi levada a um pet shop de Belo Horizonte para serviço de banho e tosa. Para surpresa da dona, a professora de balé Laysa Leão, 32 anos, o proprietário do local permitiu que a cadelinha cruzasse com o seu animal de estimação. “Por ter sequelas no quadril em consequência de um atropelamento sofrido, ela jamais poderia ter cruzado”, diz a dona. A gestação de risco, não planejada, gerou preocupação e gastos, além de sofrimento para a cadela, que teve cinco filhotes. A solução foi buscar reparação na Justiça. “Entramos com ação em que tanto a Mel quanto sua tutora são autoras. Pleiteamos danos materiais para a dona e danos morais para a vítima”, diz a advogada animalista Gabriela Maia. Esse foi o primeiro caso de Minas Gerais em que o animal é autor da ação e que segue em andamento aguardando decisão.
As primeiras ações judiciais em que os pets figuram como autores surgiram no início de 2020, mais especificamente em Salvador (Bahia) e em Cascavel (Paraná). “O autor da ação é o animal que foi vítima, mas representado perante o poder judiciário por uma pessoa ou entidade”, diz Ataide Junior. Minas Gerais também se destaca no combate aos maus-tratos. Pioneira, a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) possui Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ética Animal, além de Curso de Direito Animal. O estado também conta com um Ministério Público atuante, único do Brasil a possuir uma Coordenadoria Estadual de Defesa da Fauna. “O MP tem legitimidade para agir em defesa dos direitos dos animais em juízo. Atuamos realizando substituição processual”, diz Monique Mosca Gonçalves, promotora de justiça do MPMG e autora do livro “Dano Animal”, lançado em 2020, abordando a dimensão jurídica da proteção animal. Outra iniciativa do órgão é a criação de um aplicativo, ainda em fases de testes, para facilitar que a Polícia Militar do estado identifique uma situação de maus-tratos de forma objetiva.
Em dezembro de 2020 mais um avanço, dessa vez na legislação estadual, que acrescentou ao art. 1º da Lei nº 22.231, de 20 de julho de 2016, que os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus à tutela jurisdicional em caso de violação dos mesmos. “A possibilidade ou não do animal ser autor de uma ação judicial é decorrente de sua natureza jurídica. Sendo ele um sujeito de direito, logo pode estar em juízo para defendê-los”, diz a promotora. Em setembro de 2020 outra vitória em defesa dos animais. O Projeto de Lei nº 1.095/2019, que se transformou na Lei Federal nº 14.064/2020 (Lei Sansão), promoveu importante alteração da lei de crimes ambientais. Desde então, deixou de ser crime de menor potencial ofensivo e o agressor passou a sofrer pena de dois a cinco anos de reclusão, multa e perda da guarda do animal. Quem maltratar cães e gatos nos dias de hoje passa a ter registro de antecedente criminal e, em caso de flagrante, vai para o xadrez sem direito a fiança. Basta acionar a polícia ou o Ministério Público.
Evolução do Direito Animal no Brasil e em Minas
- Em julho de 1934, o Decreto lei n° 24.645, de autoria de Getúlio Vargas, fala expressamente que os animais podem ir a juízo, quando assistidos pelos membros do Ministério Público, a sociedade protetora dos animais ou tutores
- A Constituição Federal de 1988 é uma das primeiras no mundo a proibir expressamente a crueldade contra os animais
- Em 29 de junho de 2005 foi julgada Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.514/SC, ligado à “farra do boi”
- Em 26 de maio de 2011, foi julgada Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.856/RJ, relacionada a “briga de galos”
- Em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a lei cearense 15.299/2013, que regulamentava os espetáculos de vaquejada no estado, passando a ser considerada prática ilegal
- No início de 2020 surgem as primeiras ações judiciais no país em que os pets figuram como autores
- Depois da Lei Federal nº 14.064/2020 (Lei Sansão), de setembro de 2020, agressores de animais podem sofrer pena de dois a cinco anos de reclusão, multa e perda da guarda
- Em dezembro de 2020, a legislação mineira permitiu que os animais sejam reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados
- Em agosto de 2021 está previsto mais um julgamento no TJPR, podendo ser o primeiro julgado a reconhecer que os animais podem ser autores de demandas judiciais
Fonte: Revista Encontro
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