A elefanta, que vivia em Sergipe, é a terceira a ser adotada pelo primeiro santuário de elefantes do Brasil, no Mato Grosso.
Em plena véspera de Natal o telefone toca no posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Aracajú (SE). O inspetor Nizandro Ramos atende; do outro lado da linha o chefe diz: “Temos um problema grande para resolver!”. Nizandro achou que era alguma carga a ser interceptada, mas o que o chefe dizia era que havia uma elefanta a ser escoltada. “Eu ri! Parecia piada. Só levei a sério quando me deram o endereço da Fazenda Boa Luz”, recorda o inspetor. A escolta da PRF era o detalhe que faltava para que a elefanta Rana pudesse, finalmente, começar a sua última viagem.
Rana estava prestes a cortar o país do nordeste ao centro-oeste – 2,7 mil km entre o hotel fazenda Boa Luz, nos arredores de Aracajú, até o Santuário de Elefantes Brasil (SEB), no Mato Grosso. Uma jornada que começou muito antes do dia 18 de dezembro, quando o contêiner com ela dentro foi colocado em cima do caminhão e ela efetivamente pegou a estrada.
De origem asiática, Rana é “uma menina muito tranquila”, assim a descreve o norte-americano Scott Blais, especialista em elefantes e diretor-presidente do SEB. Estima-se que ela tenha entre 50 e 60 anos, no entanto, nenhuma documentação indica sua idade de forma confiável. Alguns relatos afirmam que a exploração da vida de Rana teria começado nos Estados Unidos quando ela fez parte da campanha eleitoral de Ike Eisenhower e Richard Nixon em 1952. Aparentemente, ela trouxe sorte, pois Ike se elegeu.
Depois de ter sido cabo eleitoral republicana, Rana chegou ao Brasil em 1967 com o circo Gran Bartolo, em Recife. A partir dali, sua vida foi viajar de trupe em trupe: trabalhou nos circos Moscow, Garcia, Tihany, Estoril e Beto Carrero. Aliás, as “sardinhas” na tromba de Rana, marca de despigmentação comum em asiáticos, me provocaram uma memória; teria eu visto essa elefanta durante a minha própria infância?
Impossível ter certeza, mas é grande a chance, afinal, eram tempos em que ver animais em circo era não apenas normal como também lícito. A carreira circense só cessou quando o uso de animais como entretenimento começou a ser proibido por leis estaduais – 11 estados já aprovaram leis a respeito, mas o projeto de lei que removeria animais de circo de todo o Brasil ainda não foi votado. Com isso, Rana foi doada para um zoológico em São Paulo, onde também teria sofrido maus tratos.
É possível que ela tenha sido transferida para a fazenda Boa Luz em 2006, um lugar cujo antigo dono vendeu depois de sofrer um processo por maus tratos de animais. Os novos donos, que compraram a fazenda em 2015, decidiram desativar o mini-zoo e a elefanta precisou ser transferida.
Apesar de tranquila, Rana não parecia estar totalmente à vontade com a nossa presença quando chegamos à sua casa. A cada tanto ela jogava em nossa direção um pedaço de cana-de-açúcar, base de sua alimentação nordestina. Era o aviso de que queria distância. “Esse é um comportamento comum entre animais que foram de circo, eles acabam ganhando atenção ou comida quando jogam coisas. Nós temos que demonstrar que temos respeito pelo espaço dela e manter distância”, diz Scott.
Após anos na fazenda Boa Luz, era como se Rana já tivesse se acostumado com a solidão daquele espaço de 1 mil m² que lhe deram. Um pedaço de terra isolado por um fino arame eletrificado e sem nenhuma árvore para se encostar. Elefantes são animais sociais, andam em bandos, herbívoros, caminham e comem pelo menos 20 horas por dia, um pouquinho de cada vez. Rana, pelo contrário, ficava parada o dia todo na pequena sombra de um telhadinho redondo. Comia quando o tratador João trazia frutas, verduras e a cana-de-açúcar. A única visita que recebia, além dele, era do trenzinho do hotel que passava uma ou duas vezes ao dia com turistas que desciam, faziam selfies, a observavam por alguns minutos e iam embora.
O desconforto de Rana era compreensível, afinal, para uma elefanta que se acostumou a ficar sozinha, nossa chegada não foi nada discreta. Logo cedo, estacionaram ao seu lado um guindaste e um caminhão com um contêiner. O objetivo era içar e colocar o contêiner de modo estratégico para que ela pudesse entrar e sair à vontade durante os dias de adaptação. Depois dessa operação de guerra, o momento era de espera; poderiam ser horas ou, talvez, dias até que Rana resolvesse, por vontade própria, finalmente adentrar.
Nos protegemos do sol forte dentro dos carros e foi justamente num desses momentos de distração que Rana começou a se dirigir ao contêiner. Ela foi rápida – o contêiner tinha chegado há apenas duas horas. “Boa menina, boa menina”, dizia Scott. Aos poucos, a elefanta explorava com a ponta da tromba e encontrava uma nova sombra onde se abrigar.
A partir disso, toda vez que Rana entrava no contêiner recebia estímulos positivos como maçãs, cenouras, beterrabas, melões e, principalmente, melancias. O prato preferido? Qualquer coisa desde que acompanhada de manteiga de amendoim. Chegava a lambuzar a tromba e o contêiner de entusiasmo. Scott também lhe dava florais e óleos essenciais, algo que com poucas gotas pode fazer diferença para um animal sensível como um elefante, diz ele. Um dos compostos prometia facilitar fases de transição.
A conexão entre Rana e a equipe cresceu rapidamente. No primeiro dia, logo após o pôr do sol, entramos no carro para ir embora e Rana caminhou até o canto da cerca que nos separava. Nos olhava e esticava a tromba, testando para saber se a cerca elétrica estava ligada. Parecia querer vir conosco. Saímos do carro, e Scott explicou a ela, com a voz mansa, que voltaríamos. Rana caminhou novamente para dentro do contêiner e partimos. Era como se já tivesse entendido e aceitado seu novo destino.
Do segundo dia em diante, era preciso testar como a elefanta reagiria quando o contêiner fosse completamente selado para a viagem. “Eu vou fechar o portão, ok?”, Scott avisava Rana sobre seus movimentos e esperava seu olhar de aprovação antes de trancar tudo completamente. Eram testes de 5 a 10 minutos realizados várias vezes ao dia. “Na primeira vez ela tremeu um pouco as patas”, conta. Para evitar uma nova despedida, Scott decidiu não ir embora e passar a noite monitorando o comportamento dela.
No quarto e último dia de adaptação, chegou à fazenda Simone Hiromoto, veterinária e funcionária pública que trabalha voluntariamente para o SEB. Simone trazia a Guia de Transporte de Animais (GTA) e a Licença de Transporte de Animais, dois documentos sem os quais Rana não poderia partir, emitidos na última hora. “Esbarramos em muita burocracia e as pessoas não sabem nem como tratar o assunto, afinal nunca ninguém levou um elefante para um santuário no Brasil. Muitas vezes, nós mesmos temos que aprender fazendo”, explica. Simone e Daniel Moura, veterinário e diretor do SEB, fizeram mais de cem ligações antes de conseguirem a autorização para a viagem.
O processo intenso e difícil começara quatro meses antes e teve uma feliz coincidência. Ao mesmo tempo em que a equipe do SEB planejava uma ação civil pública solicitando a ida de Rana ao santuário, o veterinário dela, Genisson Resendes, estava decidido a buscar um lugar melhor para a elefanta viver. “Achei o santuário em uma pesquisa na internet, mandei um e-mail tão feliz e empolgado que nem lembro direito o que escrevi”, reconta.
O guindaste começou a içar o contêiner com Rana às 10h30 do dia 18 de dezembro de 2018. Logo ao sair do chão ele balançou e Rana ficou agitada. Apesar de todo o período de adaptação, essa movimentação era nova para ela. O contêiner voltou ao chão, Scott se pendurou nele e começou a falar com Rana. “Boa menina, boa menina, nós vamos para um lugar melhor, onde já estão a Maia e a Guida”, explicava ele. A partir desse momento, ela se acalmou e o içamento seguiu.
Enchemos os galões com água para Rana e partimos para cruzar Bahia, Goiás e Mato Grosso. A viagem passou pelas três chapadas brasileiras – a Diamantina, a dos Veadeiros e terminou na dos Guimarães. Dirigimos até a madrugada, parando somente para comer e abastecer quando necessário. A cada posto, o olhar arregalado e curioso de quem teve a sorte de cruzar com a caravana. Alguns vinham correndo, celular na mão: “Eu vim ver o elefante!”. Rana também parecia curiosa, esticava a tromba querendo cheirar tudo e todos.
De madrugada, Rana se movimentava dentro do contêiner, apoiando o corpo ora para um lado, ora para o outro, com o rabo sempre balançando. O caminhão sofria nas subidas, andando a míseros 20 km/h. Talvez nunca tivesse levado tamanha carga, muito menos uma que se mexesse. Rana pesa cerca de 3,5 toneladas. Os maiores obstáculos na estrada foram durante as madrugadas, com carretas que assustadoramente invadiam o espaço entre nós e Rana em um zig-zag obrigatório, invadindo a contramão para evitar buracos e crateras no asfalto.
Ocupamos o tempo contando histórias curiosas. Scott lembrava de elefantes especiais que já cuidou quando trabalhava em um santuário no Tennessee (EUA). “Uma vez uma elefanta fugiu, parou na janela de uma casa. A moradora assistia um filme e ofereceu pipoca para ela. Quando cheguei, estava a polícia e a elefanta bem tranquila. Achei que iria ter problemas, mas pelo contrário, depois disso, todos os moradores da cidade queriam a visita de um elefante”, disse. Segundo ele, essa mesma elefanta, Barbara, se comunicava e mandava mensagens através de médiuns espirituais.
Assim a viagem seguiu, com histórias de elefantes, o susto de um animal morto na estrada, e um pneu furado do caminhão que foi trocado na passagem por Brasília. Rana já deveria estar exausta quando, depois de rodar por 78 horas e 46 minutos, dobramos na estrada de terra que dá acesso ao Santuário na zona rural de Rio da Casca (MT), a 110 km da capital Cuiabá. A emoção da equipe era evidente, mas ela logo foi substituída por tensão. Os guindastes para içar a elefanta ainda não tinham chegados. Era preciso pensar rapidamente em um plano B, pois conseguir outro guindaste em plena véspera de natal seria praticamente impossível.
De imediato, ainda dentro do contêiner, Rana recebeu plantas nativas. Observava tudo e colocava a tromba na grade a todo momento. O alívio da equipe veio junto com a chuva e a chegada dos guindastes – duas horas atrasados. O solo virou lama e o caminhão atolou, mas nada que um trator não resolvesse. Em meio à presença da imprensa, a chuva e o atraso das máquinas, Scott abriu o portão, mas se esqueceu de abrir a parte do telhado do contêiner. Antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, Rana deu seu jeito: dobrou as patas, e carinhosamente entrou em seu novo lar.
Saiu e cheirou tudo, afundou as patas em um monte de terra preparado para ela, jogou terra no corpo, barriu, e fez questão de expulsar o galo George, curioso para conhecê-la. Rana passou a noite ainda em adaptação no curral, afinal, era preciso estudar suas reações. Na manhã do dia seguinte foi o momento de conhecer as duas elefantas, Maia e Guida, que já moram no santuário há um ano. No primeiro contato, Guida foi imensamente receptiva, enquanto Maia fez alguns gestos com a tromba, como alguém que quer demonstrar sua autoridade à novata.
Após algumas horas, as três gigantes foram liberadas para andar pela área de 1100 hectares do SEB. Rana não se intimidou. Maia e Guida seguiram para o lago e ela foi atrás, surpreendendo a todos. “Ela foi até lá e não entrou, mas já é sinal de que vai se adaptar facilmente”, diz Scott. Esse era o momento de perder Rana em meio ao verde do Santuário, um cenário muito diferente do qual a encontrei na semana anterior e ainda mais diferente dos quais passou a vida trabalhando.
O transporte demandou quatro meses de esforço, 2,7 mil km rodados e um custo de 25 mil dólares para entregar Rana a um lugar parecido à paisagem da qual ela nunca deveria ter saído. O Santuário de Elefantes Brasil é a primeira experiência do tipo em toda a América Latina. Ele foi idealizado em 2013 pela brasileira Junia Machado após uma visita ao zoo de São Paulo quando viu a situação da elefanta que vivia lá. Teresita, como era chamada, faleceu esta semana enquanto editamos essa matéria. O tempo não foi suficiente tanto para ela como para Pelusa, outra elefanta que vivia no zoo de La Plata, Argentina e morreu no ano passado. Atualmente, cerca de 10 elefantes, de vários países, estão nesta mesma situação, aguardando uma chance para serem recebidos pelo local.
Em meio a este debate envolvendo zoológicos, circos e instituições governamentais sobre o uso de animais para entretenimento, a equipe do SEB afirma que não há como estimar exatamente quantos elefantes são exportados ou vendidos no mundo devido ao mercado ilegal. Entretanto, só para citar um exemplo, em janeiro de 2018, segundo a ONG Conservantion Action Trust, a China importou, de uma só vez, cerca de 30 elefantes da África. Portanto, se considerarmos somente este dado, no dia que Rana chegou ao Santuário, já perdemos por 29.
Rana parece ter sido bem recebida pelas outras duas moradoras do Santuário de Elefantes do Brasil, Maia e Guida .- FOTO DE GABI DI BELLA
Fonte: National Geographic
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