A estudante de direito Isabelle Dellê Volpe teve uma surpresa ao descobrir a aprovação de uma lei de 2018 em Santa Catarina. Do dia para a noite, os deputados haviam mudado de opinião sobre o sentimento dos cavalos. Para eles, os equinos não eram mais considerados seres que “sentem dor e angústia”, ou seja, não seriam mais sencientes e perderiam o status de “sujeito de direito” em todo o estado catarinense.

A estudante buscou uma justificativa para a mudança, mas deu com a cara na parede. A emenda não dá detalhes. “Não tinha como explicar a retirada”, diz em entrevista a Ecoa. Em 2018, a espécie foi incluída no código de proteção animal que já existia desde 2003, mas os parlamentares voltaram atrás na atualização menos de um ano depois. Em Santa Catarina, apenas gatos e cachorros usufruem oficialmente de direitos, têm dor, angústia e senciência (a capacidade de ter consciência sobre as própria sensações e sentimentos).

A exclusão dos cavalos passou despercebida até 2020, quando Isabelle escreveu um artigo sobre o tema durante uma aula. A discussão, porém, não se restringiu à universidade. O debate ganhou contorno filosófico, jurídico, político e científico em torno do que é a consciência e sobre o relacionamento mantido entre seres humanos e animais. Apesar disso, o mistério sobre a exclusão dos cavalos continuava. “Não tinha como saber”, disse.

Escolha seria “especista”

No artigo divulgado em uma publicação jurídica, a universitária de direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) defende que a retirada dos cavalos é inconstitucional e quebra o princípio jurídico da “vedação do retrocesso”. Ou seja, a Constituição Federal garante que um direito não pode ser revisto de uma hora para outra.
Isabelle argumenta que a lei é “especista”. Quer dizer, delimita o número de espécies “escolhidas” como sencientes a partir da relação do ser humano com determinados bichos, não de acordo com a ciência. É o mesmo raciocínio usado para proteger animais domésticos mais tradicionais. “A defesa de gatos e cachorros como sujeitos de direito é justificada por eles serem sencientes. Então, não há lógica em excluir animais que também são sencientes”, diz.
A estudante também aponta um suposto interesse de associações de criadores, corredores de cavalo e de exportadores de carne de cavalo nos portos de Santa Catarina.
Em 2017, 115 mil dólares de carne de cavalo teriam saído do porto catarinense de São Francisco do Sul, uma participação menor em comparação a Santos e Salvador. Os maiores clientes são a Bélgica, Rússia e países na Ásia.
Em novembro de 2020, Isabelle foi premiada pelo artigo em uma conferência mundial sobre bioética e direitos dos animais. O reconhecimento é parte de um longo bate-cabeça entre juristas, cientistas e políticos sobre a proteção animal.
Humanos não são os únicos “sujeitos de direito” perante a Constituição. Biomas naturais, animais e até mesmo espólios e propriedades têm direitos para protegê-los. Além do Congresso, os estados têm autonomia para criar códigos sobre como tratar cada animal.
Há estudiosos e ativistas que defendem que as leis deste tipo, na verdade, oficializam a exploração. Para eles, uma solução para acabar com a violência contra a fauna seria o abolicionismo animal. Na forma mais radical do conceito, seria uma separação integral entre o nosso estilo de vida e os dos animais, inclusive os domésticos.
Segundo o professor Vicente de Paula Ataide Junior, coordenador do grupo de Direito Animal da Universidade do Paraná (UFPR), a Constituição Brasileira e leis estaduais são mais moderadas e praticam o bem-estarismo. Nesta concepção, as leis reconhecem que é impossível evitar o contato e cria leis para protegê-los de maus tratos, impõe métodos para abate e tentam criar uma relação equilibrada, de bem-estar com os animais.
Para o especialista, toda a fauna deveria ter direitos individuais, como acontece em alguns estados brasileiros. Na Paraíba, há um código animal alvo de pecuaristas que defende que todos os animais devem ter tratamento digno, respeito às existências física e psíquica, abrigo, alimentação e tratamento veterinário. Há também um trecho específico para corridas de cavalo (turfe), saltos (hipismo) e equoterapia. A lei de Santa Catarina, porém, não há um trecho dedicado às atividades equinas.
O professor defende a criação de uma lei como a paraibana a nível nacional para ver os animais não só como mantenedores de um meio ambiente equilibrado, mas como seres individuais com consciência, direito à vida e à proteção. É um debate que se estende pela história humana.

Afinal, o que é consciência?

Há décadas, cientistas estudam a inteligência de espécies como chimpanzés, golfinhos, elefantes e aves, etc. Em 2012, cientistas do mundo todo concluíram no documento batizado de Declaração de Cambridge que todos os vertebrados sentem dor e manifestam algum grau de consciência sobre a realidade.
Entre os invertebrados, há grupos que defendem que cefalópodes, como o polvo e a lula, também têm consciência. Em uma interpretação polêmica, pesquisadores brasileiros afirmam que algumas espécies de aranhas manifestam pensamentos por meio da teia, como se pudessem “expandir” a atividade cognitiva além do próprio cérebro minúsculo.
Uma parte dos biólogos costuma se ater à descrição dos comportamentos de cada espécie a estímulos para interpretar e chegar a conclusões sobre a inteligência e os “sentimentos” de cada animal. A análise também observa o equilíbrio no ecossistema, a relação em sociedade e familiar e, outro grupo de especialistas dedicam-se a uma análise mais física mesmo, como o formato, tamanho, ligações neurais e até ranhuras do órgão cerebral. Este tipo de estudo costuma fortalecer a interpretação subjetiva da observação.
A nossa compreensão da inteligência dos bichos é diferente a depender da época e do lugar. No passado, o filósofo René Descartes defendeu que animais eram seres desprovidos de pensamento propositivo e lógico como os humanos, e logo eram corpos autômatos e instintivos.
Os egípcios acreditavam que os felinos eram sagrados. Na Índia, as vacas ocupam o mesmo posto sacro. No Brasil, enquanto bovinos, suínos e aves são consumidos em larga escala, o consumo de carne de cachorro é impensável, diferente de países asiáticos.
A visão diferenciada para cada animal é chamada de “especismo”. Uma reflexão a partir dele pode ser: por que uma pessoa defende a vida das tartarugas, mas consome carne de porcos, que são vertebrados considerados complexos? Ou por que é preciso de grandes campanhas educativas para acabar com o termo pejorativo e tentar salvar a “anta”, um mamífero pouco colorido e sem o apelo visual de outras espécies, enquanto é mais fácil sensibilizar a população sobre a importância do cativante mico-leão-dourado?
Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou uma lei para aumentar as penas contra quem comete maus tratos aos animais, a chamada “Lei Sanção”. Porém ela só vale para cães e gatos.

“É uma esquizofrenia moral do ser humano fragmentar e diferenciar este sofrimento”, explica o professor Vicente de Paula.

De essenciais para o transporte a terapia

Ao longo da história da humanidade, os cavalos transportaram cargas, pessoas e não faltam monumentos erguidos com soldados montados. Genghis Khan, Napoleão Bonaparte, imperadores romanos, Dom Pedro II e os bandeirantes foram homenageados em estátuas onde brandiam espadas em cima de um cavalo. Na Guerra do Paraguai, a falta de equinos quase impediu a vitória de alguns pelotões contra os paraguaios. Mais de 8 milhões de cavalos mortos na Primeira Guerra Mundial e o massacre virou até filme em Hollywood, dirigido e produzido por Steven Spielberg.
Após os automóveis, a exploração de cavalos para o transporte e como artifício militar diminuiu. Eles ainda são usados em grupos de cavalarias da polícia militar, mas milhares são celebridades do entretenimento lucrativo das corridas.
Em publicações especializadas em turfe, a morte de um cavalo famoso ganha um obituário detalhado e instituições como o Jockey Club de São Paulo funcionaram mesmo durante as medidas restritivas causadas pelo novo coronavírus.
O relatório “Estudo do Complexo do Cavalo”, produzido pelo Ministério da Agricultura em 2016, afirma que o setor de turfe, entre leilões, eventos e corridas, gera R$ 786 milhões por ano. O documento aponta que cavalos são seres sensíveis, que não podem ser alvos de esporas e chicotadas. Em outro documento de boas práticas do mesmo ministério, é proibido as “esporadas” ou “chicotadas excessivas” para quem cria e compete.
Outra área de destaque é o hipismo, em que são tratados como atletas de alto rendimento e recebem tratamentos luxuosos. Cavaleiros como Doda Miranda costumam dizer que “70%” do mérito no hipismo é a relação afetiva entre o cavalo e o cavaleiro, em um esporte que conta com influência de bilionários.

O afeto entre pessoas e cavalos também é o ponto de partida para a chamada equoterapia, método terapêutico tido como revolucionário para tratar dificuldades motoras e de cognição, como autismo em crianças.

Cavalo sente dor?

O professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP) Stelio Pacca Loureiro Luna estuda o sofrimento animal e é incisivo sobre a dor, angústia e sensibilidade dos equinos. Ele coordena um grupo que criou uma escala de dor para animais como gatos e cachorros, porcos, jumentos e cavalos. O método vai de 0 a 3 em 62 tipos de observação, em que 0 é um animal sem dor, e 3 um animal com dor intensa.
Um grupo de 24 cavalos sadios foi anestesiado de maneiras diferentes antes da castração — uns receberam analgésicos antes e depois da anestesia, outros analgésicos só após anestesia, por exemplo. Os cavalos, então, foram filmados e analisados por 36 horas para registrar alterações no comportamento. O estudo conclui que o grupo que recebeu analgesia só após a cirurgia sentiu mais dor em relação ao que recebeu analgésicos antes e depois. A dor foi expressa pelo ritmo cardíaco, expressão, comportamento, como de recolher-se em um canto.”
Pergunte a qualquer dono de cavalo. São bichos que manifestam muita dor, especialmente quando estão com cólicas. Falar que o cavalo tem menos dor do que outras espécies é uma aberração.
“O coordenador de eventos Natalício Vambommel, do Núcleo Catarinense dos Criadores de Cavalo Mangalarga Marchador, representa o segmento de exposição e melhoramento genético da raça Mangalarga, um núcleo de criadores com cavalos avaliados em até R$ 6 milhões. A raça é conhecida pela docilidade e é usada em aulas para iniciantes.
Embora seja membro de uma associação de cruzamento de raças, ele diz que a lei de proteção aos cavalos não prejudicou os eventos enquanto esteva em vigor. Para ele, também não há dúvidas de que cavalos são sensíveis. “O cavalo conhece seu cheiro, seus hábitos, sente falta, dor e angústia”, diz.

O diretor de uma associação de resgate de animais também discorda do código catarinense. “Todos os animais têm sentimento. Cavalos são totalmente carinhosos com os donos, e ficamos emocionados, quando resgatamos um que foi deixado para trás”, diz Patrick Münzfeld, chefe da Associação de Proteção aos Animais Desamparados (APAD-SC), que costuma resgatar cavalos abandonados em Rio do Sul. Apesar de o resgate de cachorros e gatos serem mais comum, ele já resgatou três cavalos de uma só vez em 2019. O trio estava cabisbaixo, com as costelas aparentes e amarrado a troncos. O dono foi autuado por maus tratos.

Projeto de lei vem a galope

O deputado federal Darci de Matos, então deputado estadual em Santa Catarina, é o criador da emenda que tirou os cavalos da lista de seres sencientes. “Os cavalos têm sentimentos, tanto quanto cães, gatos ou até mais”, diz. “Mas houve uma pressão muito grande”, explica. Ele afirma ter sido pressionado por associações tradicionalistas do estilo de vida gaúcho. Na prática, são grupos do sul que tentam emular as tradições dos primeiros habitantes, como rodeios e o laço (onde um cavalo corre atrás de um boi, laçado pelo cavaleiro).À época, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a vaquejada não seria mais permitida no Ceará. A decisão dividiu os ministros da corte.
Em 2015, os parlamentares catarinenses também tinham proibido a chamada “puxada”, atividade em que um equino puxa até 1 tonelada de pedras por um terreno com lama e sem a ajuda de uma carroça.
Segundo Darci, as proibições causaram receio de que as ONGs ou juízes promovessem a mesma proibição contra os rodeios em Santa Catarina. “Fiz a emenda achando que iria ajudar os tradicionalistas. Todos, mesmo sabendo que [os cavalos] são sencientes, entenderam que a lei seria utilizada para coibir os tradicionalistas”, explica.
Ele afirma que considera o cavalo “consciente e sempre será”. “Falei que eu tiraria [a emenda] se quisessem, mesmo acreditando que cavalo é senciente”. Darci, que disputou as eleições para prefeito de Joinville neste ano, faz campanha em prol dos animais nas redes sociais.
O deputado não especificou qual grupo teria o pressionado pela derrubada da emenda. A reportagem de Ecoa entrou em contato com o Grupo Tradicionalista Catarinense (GTC) para entender se houve envolvimento com o caso. O presidente do GTC, Ciro Harger, nega que tenha feito “pressão”, mas diz que se reuniu em comissões e pediu a revisão do texto. Segundo ele, a decisão da época não explica como seriam realizadas as atividades tradicionais a cavalo no estado. “Para entender o tamanho do erro, eu poderia usar uma égua no lugar de um cavalo para não atender à lei, se quisesse. O texto só dizia ‘cavalo’ e excluía equinos como a égua ou o burro. Não foi bem formulado”, explica.
Harger afirma que tradicionalistas usam regras próprias para cuidar dos cavalos e que o atual decreto de Bolsonaro e a lei estadual pacificaram o bate-cabeça de dois anos atrás. Em um consenso improvável entre defensores dos direitos animais e criadores, Harger também defende que todos os animais são seres sencientes e que é injusta a inclusão apenas de cães e gatos. “Não é certo excluir um ou outro animal. O certo é colocar todos que são sencientes na lei”. Botar o cavalo de volta na lista nos próximos meses é o que esperam advogados como Isabelle, do começo da reportagem. Há a expectativa de que o Ministério Público Federal acione a Justiça de Santa Catarina para garantir que o estado tenha um plano definido para proteger e reconhecer que cavalos e vertebrados têm, finalmente, direitos. “Eu não veria problema nenhum”, afirma Harger.
FONTE: UOL ECOA