Ao fim do evento “10 anos de atuação especializada do MPMG na defesa dos animais”, celebrado no dia 22 de novembro de 2021, foi formulada a “Carta de Belo Horizonte”, contendo conclusões e recomendações referentes ao direito animal. Leia a carta na íntegra:
“Os membros dos Ministérios Públicos e do Poder Judiciário presentes no IX ENCONTRO
DO MPMG NA DEFESA DOS ANIMAIS, comemorativo dos 10 ANOS DE ATUAÇÃO
ESPECIALIZADA DO MPMG NA DEFESA DOS ANIMAIS, sob os auspícios do
Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por meio do Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) e da Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais
– CEDA, da Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente
(ABRAMPA), do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP e do Conselho
Nacional de Justiça – CNJ, realizado no dia 22 de novembro de 2021, em sistema híbrido,
na sede da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, na cidade de Belo
Horizonte, e em meio virtual;
Considerando ser função institucional do Ministério Público, na forma do artigo 129,
inciso III, da Constituição Federal, a proteção do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos;
Considerando que, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”, conforme preceitua o artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988;
Considerando que, para assegurar a efetividade desse direito, corolário do direito
fundamental à vida (CRFB: art. 5º, caput), o texto constitucional incumbe ao Poder
Público os deveres de «preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas» e de «proteger a fauna e a flora, vedadas,
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade» (art. 225, §1º, I e VII,
respectivamente);
Considerando que, em sua última parte, o referido dispositivo constitucional traz norma
autônoma de proteção aos animais, que estabelece a regra de vedação à crueldade contra
animais e o princípio implícito da dignidade animal;
Considerando, assim, que o legislador constituinte originário reconheceu que os animais
possuem um valor intrínseco que deve ser respeitado, alçando-os a destinatários diretos
dos deveres constitucionais;
Considerando a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, publicada em 07
de julho de 2012, na Francis Crick Memorial Conference on Consciousness in Human
and non-Human Animals, no Churchill College da Universidade de Cambridge, no Reino
Unido, quando os neurocientistas e neurofisiologistas, após diversas pesquisas,
reconheceram a existência de circuitos cerebrais similares entre homens, mamíferos e
aves, por exemplo, capazes de gerar consciência, sensações de dor e prazer, assim como
a percepção da própria existência;
Considerando o disposto no Ato da Corregedoria Geral do Ministério Público de Minas
Gerais – CGMP/MPMG n.º 2/2021.
Considerando a importância do modelo de atuação especializada na defesa dos animais
tem sido reconhecida pelos diversos setores da sociedade, pois contribui para
apresentação, por parte do MP, de respostas técnica e juridicamente adequadas e
socialmente efetivas para os conflitos, devido ao apoio estratégico aos órgãos de
execução. Essas respostas se convertem em soluções espacialmente uniformes, mais ágeis
e resolutivas, resultando em efetividade na defesa dos animais.
Aprovam as seguintes conclusões e recomendações:
Organização do MP e Poder Judiciário para atuação em defesa da fauna
1) A evolução científica, filosófica e legal, especialmente considerado o pressuposto
fático da senciência, deve orientar a implementação dos direitos dos animais.
2) No sistema jurídico brasileiro, os animais são tutelados em virtude de sua
dignidade própria, amparada em seu valor intrínseco, nos termos do art. 225, §1º,
VII, da CR/88, tudo a viabilizar a defesa de seus direitos fundamentais em Juízo.
3) Os Ministérios Públicos devem fomentar a criação de estruturas especializadas na
defesa dos animais.
4) É recomendável que, no âmbito do Ministério Público, sejam editadas normas
orientando a atuação na implementação dos direitos dos animais;
5) O Ministério Público deve fomentar a atuação coordenada entre seus membros, a
sociedade civil, a comunidade acadêmica, os profissionais atuantes na área e os
demais órgãos públicos para propiciar maior eficiência nas ações de defesa dos
animais;
6) O Poder Judiciário exerce papel fundamental na efetivação dos direitos dos
animais;
Animais silvestres
7) A apuração do crime de tráfico de animais silvestres não deve se restringir à
manutenção em cativeiro, mas deve sempre perseguir a elucidação de eventual
organização criminosa, buscando-se na investigação outros crimes comumente
associados, como lavagem de dinheiro, falsificação de anilha, receptação etc;
8) Os animais silvestres exercem serviços ambientais relevantes e contribuem
decisivamente para a manutenção do ecossistema, inclusive em área urbana;
9) A reintrodução dos animais silvestres apreendidos na natureza deve ser priorizada
em detrimento de todas as outras formas de destinação, cabendo ao Poder Público
criar estruturas adequadas para o recebimento, a triagem e a reabilitação;
10) É recomendável que o Ministério Público, na defesa penal da fauna silvestre,
busque, junto à Justiça Criminal, a implementação de medidas despenalizadoras
específicas, como conscientização ambiental e prestação de serviços em entidades
de proteção animal;
Maus-tratos
11) Cabe ao Ministério Público perseguir a aplicabilidade dos dispositivos
constitucional e legais que vedam qualquer prática que submeta animais à
crueldade;
12) Diante de conduta que se amolde ao tipo penal de maus-tratos, incumbe ao Poder
Público exercer o seu poder- dever de fazer cessar a prática delitiva, retirando o
animal da condição lesiva a seus interesses, em cumprimento ao art. 25 da Lei de
Crimes Ambientais, bem como informando aos demais órgãos e instituições
públicas responsáveis pela apuração do crime;
13) Na abordagem do crime de maus-tratos a animais, devem ser considerados estudos
científicos que indiquem que agressores cruéis de animais são potenciais
agressores de seres humanos e propensos à prática de outros delitos (teoria do
link);
14) Ao se olhar para o animal como ser senciente e dotado de dignidade, percebe-se
que não se trata mais de objeto do crime, mas de sujeito passivo, que sofre a ação
que lhe causa sofrimento. É vítima do delito e sua vida e integridade são os bens
jurídicos tutelados.
15) Incide a regra do concurso material na hipótese de um crime ser praticado contra
mais de um animal, uma vez que são ofendidos distintos bens jurídicos, de forma
autônoma;
16) Na defesa do meio ambiente, e visando à prevenção e repressão de atos cruéis
contra os animais, o Ministério Público deve fiscalizar todas as apresentações e
os eventos públicos envolvendo animais, verificando, em especial, as condições
de bem-estar e a existência das autorizações necessárias;
17) O conflito entre normas de proteção ao patrimônio cultural e de vedação à prática
de atos de crueldade a animais é aparente, não havendo manifestação cultural
protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro que importe em maus-tratos a
animais;
18) A vaquejada é atividade intrinsicamente cruel, conforme entendimento do
Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 4983/16, do Ceará, cabendo aos Ministérios Públicos, na tutela dos
interesses dos animais, acionar o Poder Judiciário para proibir as provas, sendo
inviável o estabelecimento de medidas para garantir o bem-estar dos animais. A
Emenda Constitucional n. 96/2017, que introduziu o §7o
ao art. 225 da
Constituição Federal, bem como Lei Federal n° 13.364/2016 e não são capazes de
excluir os maus-tratos causados aos animais, não sendo as vaquejadas
reconhecidas como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN;
19) As rinhas de galo são atividades ilegais, cruéis e abusivas, constituindo crime de
maus-tratos, nos termos da ADI n.1.856/11 do STF. Os Ministérios Públicos
devem atuar com rigor para coibir os delitos, buscando viabilizar a existência de
projetos de ressocialização de galos combatentes, para que os animais possam ser
adequadamente destinados à adoção responsável;
20) É necessária a tipificação específica de condutas lesivas aos interesses e direitos
dos animais, como prática de rinha, abandono, omissão de socorro, transporte
inadequado e tráfico de animais silvestres, bem como o aumento da pena do crime
de maus-tratos (caput do art.32 da Lei n.9605);
21) É dever do Poder Público Municipal adotar medidas eficientes para obtenção do
controle populacional de cães e gatos em área urbana, sendo vedado, para tal fim,
o extermínio de animais, por se tratar de medida antiética, ilegal e ineficiente para
tal mister;
22) Também no controle populacional de animais silvestres, como as capivaras, em
áreas urbanas, é dever do Poder Público Municipal adotar medidas eficientes,
éticas e legais de controle, não atendendo o extermínio de animais aos referidos
critérios;
23) A atuação multidisciplinar, segundo os estudiosos, é ação indispensável para o
tratamento e acompanhamento dos portadores de TA (Transtorno de
Acumulação), o que inclui, necessariamente, a participação da saúde mental, da
assistência social, da zoonoses do Município e de um médico veterinário com
qualificação adequada para tratar do coletivo;
24) A utilização de veículos de tração animal causa intrínsecos maus-tratos aos
animais envolvidos, além de riscos no trânsito e à saúde pública, sendo dever do
Poder Público Municipal adotar medidas eficientes para regulamentar, reduzir e,
paulatinamente, proibir a prática em área urbana;
Instrumentos ambientais
25) O licenciamento ambiental, instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente,
deve servir à promoção de defesa dos animais, ressaltando-se a importância de
serem previstas condicionantes específicas mitigatórias e compensatórias para os
danos irreparáveis causados à fauna;
26) Os peixes também são seres sencientes, dotados de dignidade, razão pela qual, no
licenciamento de hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas – PCHs, faz-se
necessária especial atenção para a mortandade de peixes ocasionada pela operação
do empreendimento, prevendo-se medidas de monitoramento e condicionantes
específicas mitigatórias e compensatórias para os danos;
27) A Avaliação Ambiental Integrada e Estratégica é instrumento oficial e relevante
no processo de regularização administrativa ambiental de empreendimentos e
deve apreciar, de forma específica, os riscos e os impactos à fauna silvestre;
28) Cabe ao Ministério Público buscar a implementação de educação animalista, tanto
formal quanto informal, que promova a formação de um novo ser social, capaz de
compreender a importância do tratamento ético a todas as formas de vida;
29) Os animais devem ser considerados no contexto de desastres, devendo seus
interesses fundamentais ser protegidos em todas as fases de planejamento do risco.
Saúde Única
30) Tratando-se do Direito Animal, ramo autônomo e transdisciplinar, é necessário se
trabalhar com o conceito de saúde única, que estabelece a interconectividade entre
a saúde humana, dos demais seres vivos e do ambiente;
Direito Civil
31) É reconhecida a família multiespécie, aplicando-se as regras do direito de família,
como já decidido pelo STJ no Resp. n. 1.713167/18;
Direito Processual
32) Os animais possuem capacidade de ser parte, devendo ser adequadamente
representados em Juízo pelo Ministério Público, Defensoria Pública e pela
sociedade civil organizada.
Finalmente, em reconhecimento ao fato de que a defesa dos animais demanda articulação
institucional, amplo diálogo, construção legislativa, estabelecimento de políticas
públicas, participação da sociedade civil e conhecimento técnico, os participantes do IX
ENCONTRO DO MPMG NA DEFESA DOS ANIMAIS, comemorativo dos 10 ANOS
DE ATUAÇÃO ESPECIALIZADA DO MPMG NA DEFESA DOS ANIMAIS
aprovaram MOÇÃO DE APLAUSOS aos homenageados no evento.”
Deixar um comentário