Nicole Pallotta, gerente sênior do programa de política animal do Animal Legal Defense Fund, do Animal Law Program, analisa a recente concessão de personalidade jurídica aos animais e o reconhecimento de seus direitos naturais por uma sentença histórica proferida pela Suprema Corte de Islamabad.
Em uma decisão inovadora, o Supremo Tribunal de Islamabad, no Paquistão, reconheceu explicitamente que os animais têm direitos legais naturais e proteção de acordo com a Constituição do país.
Animais não humanos ainda são comumente tratados como “propriedade” em todo o mundo, o que os coloca em uma categoria legal semelhante aos objetos inanimados. Embora problemático por muitas razões quando aplicado a seres sencientes, esse status jurídico não impede que os animais tenham direitos significativos e executáveis. No entanto, os tribunais nos EUA e em todo o mundo relutam em fazer declarações diretas sobre os direitos legais dos animais.
A decisão da Suprema Corte de Islamabad é um afastamento revigorante e histórico do status quo jurisprudencial com relação aos animais.
O principal assunto do caso perante o tribunal foi Kaavan, apelidado de “o elefante mais solitário do mundo”, que por mais de 30 anos ficou acorrentado sozinho em um cercado pequeno e enfadonho no zoológico Marghazar. A decisão de 67 páginas do presidente do tribunal, Athar Minallah, disponível on-line, descreve os detalhes do confinamento de Kaavan e a prolongada crueldade que ele e os outros animais confinados no zoológico sofreram. O juiz Minallah ordenou que os animais, a quem ele se referia como “prisioneiros”, fossem realocados para santuários, mas não parou por aí. Sua decisão foi além desta instalação, e abordou todos os animais em cativeiro.
Estudiosos e defensores propuseram vários caminhos para os animais romperem com o que é amplamente considerado um paradigma de propriedade antiquado. A personalidade jurídica é apenas um caminho para um status legal além da mera propriedade, e alguns tribunais declararam explicitamente os animais como personalidades jurídicas. Por exemplo, nos últimos anos, um orangotango e um chimpanzé receberam de juízes a personalidade jurídica na Argentina.
Essas e outras decisões semelhantes envolveram tipicamente um único animal ou espécie. Embora significativas para os animais afetados, e simbólicas de mudanças nas normas culturais em relação aos animais, essas decisões geralmente não fazem declarações sobre os direitos legais dos animais de forma mais ampla. Em contraste, o juiz Minallah colocou uma questão mais abrangente: “Os animais têm direitos legais?” Sua resposta foi igualmente direta:
“A resposta a esta pergunta, sem qualquer hesitação, é afirmativa… Como os humanos, os animais também têm direitos naturais que devem ser reconhecidos. É um direito de cada animal… viver em um ambiente que atenda às suas necessidades comportamentais, sociais e fisiológicas.”
Além de terem direitos naturais inerentes, no sentido de estarem vivos e sencientes, o juiz Minallah observa que os animais também têm direitos protegidos por leis contra a crueldade. No Paquistão, esses direitos são encontrados na Constituição, enquanto nos EUA, a maior parte das leis de crueldade estão localizadas em nível estadual.
As leis contra a crueldade animal fornecem proteções importantes, mas às vezes incompletas. Além do direito limitado de estarem protegidos da crueldade e da negligência, quais são os direitos dos animais? E quais direitos eles deveriam ter?
O juiz Minallah fornece uma resposta clara: os animais, como seres sencientes, têm direito a um ambiente em que suas necessidades fisiológicas, sociais e comportamentais possam ser atendidas. Esta não é uma posição extrema, mas poucos animais atualmente desfrutam desses direitos básicos.
Muitas leis contra a crueldade sofrida pelos animais, incluindo as dos EUA, proíbem “dor e sofrimento desnecessários”. Essa frase pode parecer inócua, mas a necessidade, especialmente em um contexto legal em que os animais são tratados como propriedade, às vezes está aberta a interpretações. Na prática, esse qualificador comum cria uma lacuna tão grande que quase tudo pode ser justificado em relação ao tratamento dado pela sociedade aos animais. A palavra “desnecessário” vem sendo usada para legitimar uma ampla gama de maus-tratos sob o pretexto de que tradicional, socialmente normativo, economicamente vantajoso ou pessoalmente conveniente equivale à necessidade.
O juiz Minallah aborda esse assunto de frente. Ao descobrir que animais selvagens mantidos em zoológicos são protegidos pela lei nacional de crueldade do Paquistão, que proíbe “dor e sofrimento desnecessários”, ele observa o amplo escopo desta frase e escreve que “estatutos benéficos” como a lei de crueldade, que foi promulgada para o benefício dos animais, devem receber a interpretação mais ampla possível.
Ao determinar o que é “desnecessário”, o juiz Minallah pesa o sofrimento dos animais contra o benefício à sociedade proporcionado pelo zoológico e considera o cálculo ético indefensável. De um lado da equação estão os animais que estão claramente sofrendo e, do outro, um zoológico que não faz nenhuma “contribuição positiva” para a sociedade. A existência de “oportunidades melhores e mais informativas” para aprender sobre os animais devido à tecnologia avançada acentua ainda mais o caso de que o sofrimento dos animais no zoológico não pode ser justificado como “necessário”.
Além de determinar que os animais têm direitos naturais com base na senciência e direitos legais consagrados nas leis de crueldade, o juiz Minallah descobriu que os animais são protegidos pela Constituição do Paquistão pelo motivo inovador de que os humanos têm direitos, sob este documento, que estão diretamente ligados ao bem-estar de animais selvagens:
“Sem as espécies selvagens, não haverá vida humana neste planeta. É, portanto, óbvio que a negligência com o bem-estar das espécies animais, ou qualquer tratamento de um animal que o sujeite a dor ou sofrimento desnecessários, tem implicações para o direito à vida dos humanos garantido pelo artigo 9º da Constituição… O tratamento cruel e a negligência com o bem-estar de um animal em cativeiro… é uma violação do direito à vida dos humanos.”
Finalmente, o juiz Minallah argumenta que, embora as constituições tenham sido escritas com os humanos em mente, elas devem ser adaptadas para abranger outros seres sencientes. O foco antropocêntrico da maioria das constituições nacionais, estruturadas em termos de humanos, ao invés de no contexto da “vida” mais amplamente, dá origem a confusões e conflitos quando os tribunais consideram o estado de seres vivos que não são humanos.
Talvez antecipando uma falácia do espantalho, comumente empregada por oponentes da expansão dos direitos legais para os animais, o juiz Minallah facilmente descarta a noção de que isso significa que os animais teriam os mesmos direitos que os humanos:
”Nunca foi o caso de quem argumenta em favor dos animais reconhecer que eles têm os mesmos direitos de que goza a espécie humana. Nenhuma libertação jamais foi dada em nome de qualquer animal para conceder-lhe a liberdade de um zoológico e permitir seu livre acesso a locais públicos destinados a humanos.”
Em vez disso, o uso da frase “direitos naturais” refere-se à animalidade, ou à natureza e necessidades de cada espécie, e ao direito dos animais sob cuidados humanos de terem suas necessidades adequadas à sua espécie satisfeitas:
“Não é natural que um leão seja mantido em cativeiro em uma área restrita. Separar um elefante de sua manada e mantê-lo isolado não é o que a natureza contempla. Como os humanos, os animais também têm direitos naturais que devem ser reconhecidos. É direito de cada animal, ser vivo, viver em um ambiente que atenda às necessidades comportamentais, sociais e fisiológicas deste.”
A decisão de que todo animal tem o direito de viver em um ambiente que atenda às suas “necessidades comportamentais, sociais e fisiológicas” tem implicações de longo alcance. No entanto, deve-se observar também o contexto da decisão, que incidiu sobre os animais silvestres em cativeiro.
O impacto prático dessa decisão ainda não é visível, mas as declarações diretas que reconhecem os direitos dos animais emitidas por uma suprema corte sinalizam uma mudança em andamento na consciência do todo em relação ao tratamento dado pela sociedade aos animais. A decisão é simbólica, como escreve o juiz Minallah:
“Kaavan se tornou um símbolo da demonstração de empatia e da necessidade de os humanos reconhecerem que as espécies animais sencientes têm direitos naturais e que não podem ser submetidas a dor e sofrimento desnecessários. Kaavan realmente se tornou um guia para o reconhecimento dos direitos dos animais em todo o mundo. Em poucas palavras, Kaavan é um símbolo de esperança para outras espécies animais que estão em estado de angústia e sujeitas à dor e ao sofrimento por causa da exibição equivocada de poder pela espécie humana.”
Mas essas declarações sobre os direitos dos animais não são meramente simbólicas. Elas formaram a base para o julgamento da Suprema Corte de que os animais do zoológico Marghazar devem ser libertados e realocados em um santuário apropriado. A decisão criou melhorias quase inimagináveis no bem-estar de vários animais, todos os quais sofreram muito devido ao seu confinamento no zoológico, em alguns casos por décadas.
Talvez o mais encorajador seja o fato de o juiz Minallah esperar que outros tribunais tomem conhecimento da decisão histórica do Supremo Tribunal de Islamabad e sigam seu exemplo. Sobre a transferência para os santuários do elefante Kaavan e de dois ursos pardos do Himalaia chamados Suzie e Bubloo, ele escreveu em uma ordem de acompanhamento:
“Eles servirão como símbolos da empatia e do respeito que as espécies animais merecem dos humanos e um lembrete de que proteger seus direitos e seu bem-estar é de extrema importância. Eles permanecerão como os mensageiros do povo do Paquistão para o resto da humanidade, ressaltando que é hora de acabar com a prisão de espécies animais sencientes em jaulas de zoológicos e de restaurar o equilíbrio da natureza, de forma a permitir que vivam com dignidade em seus respectivos habitats naturais, para que eles possam desfrutar de seus direitos.
Por Nicole Pallotta / Tradução de Ana Carolina Figueiredo
Fonte: Olhar Animal
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