Viadutos projetados para animais silvestres. Não simples passarelas, mas estruturas de concreto, largas e com vegetação. A ideia é reduzir o impacto da fragmentação do habitat e o risco de atropelamentos, fatores responsáveis por extinção de espécies e alta mortandade da fauna.
O recém-inaugurado viaduto vegetado (em inglês, overpass) sobre a BR-101, na área de ocorrência do ameaçado mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) no estado do Rio de Janeiro, chamou a atenção para a possibilidade do aumento da implantação dessas estruturas no Brasil. Somente outros três desses viadutos, sendo dois em uma mesma linha férrea, existem em território nacional.
“A função primária dos viadutos vegetados é restabelecer a conexão entre os ambientes dos dois lados da rodovia ou ferrovia e aumentar a possibilidade de travessias seguras, sobretudo para animais que de outra forma evitariam cruzar a via”, explica o biólogo e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS), Andreas Kindel.
Uma das principais consequências da construção de rodovias e ferrovias para a fauna é a fragmentação de seu habitat, gerando o chamado “efeito barreira”. Para algumas espécies, a clareira gerada pela estrada, o ruído, a poluição e o movimento de veículos inibem e até impedem a circulação dos animais por um ambiente que já foi uma paisagem única, não dividida. É o que acontece com algumas espécies de aves que vivem no sub-bosque de florestas (região logo abaixo das copas das árvores maiores), anfíbios que habitam o solo forrado com folhas e alguns pequenos mamíferos que frequentam as copas das árvores (dossel), como roedores e marsupiais. “Esses animais evitam as estradas. Raríssimos são os registros de atropelamentos desses grupos”, explica Kindel.
Essa barreira pode isolar populações de espécies, gerando cruzamentos entre animais aparentados (consanguinidade) e uma consequente dificuldade de adaptação às mudanças ambientais. O chamado fluxo gênico, que possibilita haver variação genética dentro da população de uma espécie, é fundamental para sua sobrevivência.
Evitar atropelamentos, que segundo o Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas (CBEE) são responsáveis pela morte de 475 milhões de animais silvestres no Brasil todos os anos, é uma função secundária dos viadutos vegetados. Kindel afirma que as cercas são ferramentas mais efetivas, pois impedem a interação entre veículos e animais. “Viadutos vegetados e outros tipos de passagens de fauna, sozinhos, não reduzem a mortalidade ou reduzem muito pouco”, salienta o pesquisador.
De acordo com Kindel, os viadutos são construídos em contextos bastante específicos, em geral quando a implantação da rodovia ou ferrovia envolve corte do relevo, como os morros. O projeto dessas estruturas deve levar em consideração a sua proximidade das formações vegetais remanescentes a serem conectadas, a garantia da manutenção dessa cobertura vegetal nativa das áreas ligadas, evitando o risco da expansão agrícola, da urbanização ou de outras infraestruturas inviabilizarem o ganho das áreas religadas, além de preferencialmente desfragmentar corredores de vegetação de abrangência regional e não somente local.
Mas para que os viadutos vegetados realmente funcionem, é necessária a instalação de um sistema com cercas para guiarem os animais até a estrutura. Elas impedem o acesso da fauna à rodovia ou aos trilhos e direcionam o deslocamento até o ponto de travessia. Se o trecho superior do viaduto tiver uma cobertura vegetal com as mesmas características de vegetação do entorno, há grande chance de ele ser utilizado.
Como é no exterior
Novidades no Brasil, os viadutos vegetados já são construídos há décadas em diversos países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Na América Latina, a primeira experiência com esse tipo de estrutura é da Argentina.
O viaduto vegetado argentino foi construído entre 2008 e 2010 sobre a rodovia RN-101, na província de Misiones – estado onde ficam as Cataratas do Iguaçu, na divisa com o Brasil. A estrada situa-se ao lado de um grande bloco de Mata Atlântica bem conservada que inclui o Parque Nacional Iguazú e o Parque Provincial Urugua-í. “O que motivou sua construção foi a localização em um corredor biológico no qual, desde 2002, trabalhamos na sua restauração e na criação de reservas naturais privadas”, explica Diego Varela, pesquisador do Instituto de Biologia Subtropical da Universidade Nacional de Misiones (IBS/CONICE) e da ONG Centro de Investigaciones del Bosque Atlántico (CeIBA).
A iniciativa tem resultado positivo. Varela, que avalia a eficiência do viaduto desde 2011, afirma que ano após ano o número de espécies utilizando a estrutura tem aumentado, sendo que 24 mamíferos de médio e grande porte já foram registradas nela. Na região há onças-pintadas (Panthera onca), onças-pardas (Puma concolor), jaguatiricas (Leopardus pardalis), antas (Tapirus terrestres), queixadas (Tayassu pecari), catetos (Tayassu tajacu), veados-mão-curta (Mazama nana) e veados-mateiros (Mazama americana).
Em unidades de conservação, e envolvendo uma única rodovia, a experiência canadense no Parque Nacional Banff é considerada uma referência. São 44 passagens de fauna selvagem, sendo seis viadutos vegetados e 38 passagens subterrâneas, além de 82 quilômetros de cercas ao longo da Rodovia Trans-Canadá, que corta a área protegida. Esse conjunto de medidas começou a ser planejado em 1981, quando o governo canadense resolveu duplicar a estrada, e foi pensado principalmente para atender animais de grande porte, como alces, cervos e ursos. Pesquisas indicaram ter ocorrido uma redução de mais de 80% de atropelamentos de fauna quando consideradas todas as espécies afetadas.
Na Holanda, um grande programa de reconexão de fragmentos de áreas com mata nativa, que inclui viadutos vegetados, foi iniciado em 1990. O trabalho identificou 1.126 pontos de desfragmentação em rodovias, ferrovias e canais hidroviários. Entre 2005 a 2018, 175 desses locais foram alvo de diversas intervenções. Atualmente, há 30 viadutos vegetados e outros 20 planejados.
Em artigo publicado em julho na revista “Landscape Ecology”, pesquisadores holandeses afirmam que a redução do tamanho dos fragmentos com vegetação nativa, bem como a diminuição da qualidade desses habitat, aumenta as extinções locais de pequenas populações de animais. Outro problema causado pelo isolamento dessas áreas é a dificuldade dessas espécies colonizarem novos fragmentos.
Esse problema motivou a implantação do programa de desfragmentação holandês. Por outro lado, os autores do artigo citam pesquisas que destacam uma ausência de análises de custo-benefício das medidas de desfragmentação de estradas, bem como dos efeitos delas sobre as populações de animais silvestres.
Kindel afirma que os viadutos vegetados associados a cercas são adequados para minimizar danos de rodovias em operação, mas não devem ser utilizados para viabilizar estradas em planejamento. “Se a estrada não se justifica, e isso tem de ser avaliado com indicadores sólidos, ela nem deveria ser cogitada. Essa virada de mesa ainda não foi feita no Brasil, embora vários mecanismos, inclusive de financiamento, já demandem essas informações”, explica o coordenador do NERF. Segundo ele, o ideal é evitar a fragmentação, e quando for necessária a implantação de estruturas que reduzam os impactos negativos sobre a fauna, que sejam parte de um planejamento amplo para toda uma região, e não intervenções pontuais.
Fonte: UOL
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