Neste domingo, 4 de outubro, celebra-se, em todo o mundo, o Dia dos animais. A data foi escolhida em 1931, durante uma convenção de Ecologia realizada na cidade de Florença, na Itália, com o objetivo de promover os princípios da Declaração Universal dos Direitos dos Animais.

No Brasil, o dia se passa, este ano, exatamente na semana em que um avanço legislativo importante foi conquistado por órgãos e grupos que atuam na defesa dos animais, entre eles, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), representado, neste tema, pela Coordenadoria Estadual de Defesa da Fauna (Cedef).

Trata-se da sanção, no dia 29 de setembro, em Brasília, da Lei Federal 14.064/2020, que ficou conhecida como Lei Sansão em razão dos atos de crueldade praticados por um homem contra um cão da raça pitbull, chamado Sansão, em Confins, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), em 6 de julho deste ano. O cachorro teve as pernas traseiras decepadas, após ter sido amordaçado com arame farpado no focinho.

A nova norma altera a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), aumentando a pena de quem maltratar ou praticar abusos contra cães e gatos, especificamente. Até então, a penalidade prevista para esse crime era de três meses a um ano de detenção, além de multa. A nova redação estipula pena de três a até cinco anos de reclusão, além da multa e proibição de possuir a guarda de animal.

A grande repercussão do caso Sansão, gerada pela indignação social decorrente do crime, acelerou a tramitação do Projeto de Lei e facilitou a aprovação da norma pelo Congresso Nacional. Uma das audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados para tratar sobre o tema contou com a presença do MPMG, representado, na ocasião, pela promotora de Justiça Monique Mosca Gonçalves, da 1ª Promotoria de Justiça de Uberaba. A convite da Presidência da República, a instituição também participou da cerimônia de sanção da lei na última quarta-feira.

Denúncia
As investigações sobre a mutilação do cachorro Sansão revelaram que também o pai do pitbull, o cão Zeus, foi maltratado pelo agressor em julho de 2018, e, em razão dos ferimentos, precisou ser sacrificado. Além disso, o agente teria cometido maus-tratos contra outros 12 animais, em 12 de julho deste ano. As agressões, conforme apurado, foram contra três cães, três gatos e seis galináceos. Uma ave morreu.

Em resposta à série de agressões praticadas pelo homem, a Cedef criou um grupo de trabalho para apoiar o promotor de Justiça de Pedro Leopoldo Ronaldo Assis Crawford, responsável pelo caso. O grupo, composto, além de Ronaldo, pelas promotoras Luciana Imaculada de Paula, coordenadora Estadual de Defesa da Fauna, Monique Mosca Gonçalves e Anelisa Cardoso Ribeiro, da 2ª Promotoria de Justiça de Caeté, ofereceu denúncia contra o autor das agressões no dia 29 de setembro.

Em uma atitude inovadora, com poucos precedentes no país, os promotores apontaram, na peça, o concurso material de crimes, requerendo o julgamento do agressor pela Justiça Comum, e não pelo Juizado Especial Criminal, como poderia acontecer em razão da natureza das infrações. “O pedido foi feito com base no fato de que o réu não preenche os requisitos para a realização do acordo de não-persecução penal, como também não atende aos critérios do art. 89 da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), não fazendo jus à suspensão condicional da pena, dada, especialmente, a gravidade em concreto dos crimes e a crueldade com que foram praticados”, explicam os responsáveis pela denúncia.

Em decisão sobre o requerimento, proferida na quarta-feira, 30 de setembro, o juiz Leonardo Guimarães Moreira acatou o pedido do MPMG e remeteu os autos para a Vara Criminal de Pedro Leopoldo. Na fundamentação, ele lembrou a Declaração de Cambridge de 2012 – um manifesto assinado por 26 neurocientistas que afirmaram não ser mais possível dizer que os animais não são seres sencientes. “Tal declaração, somada ao princípio da dignidade animal, veio redimensionar o status jurídico dos animais não humanos, de coisas para sujeitos, impondo ao poder público e à coletividade comportamentos que respeitem esse novo status, seja agindo para proteger, seja abstendo-se de maltratar ou praticar contra eles atos de crueldade”.

Conforme o juiz, o cão Sansão é um sujeito de direito e, por isso, tem total acesso à Justiça e aos direitos fundamentais. “Entendo como justa a remessa dos autos à Justiça Comum, não por me desobrigar de julgar tamanha atrocidade, mas seguindo firmemente os mais modernos entendimentos, tenho plena convicção que a Justiça Comum chegará a decisão mais adequada e digna, para um ser que merece nada menos que sua irrestrita dignidade”, justificou.

Mudança social

A coordenadora da Cedef, Luciana Imaculada, elogiou a sensibilidade do magistrado na decisão e destacou que o caso Sansão é um emblema de uma mudança social que se processa na relação entre os seres humanos e os animais, a começar pelos mais próximos, chamados animais de companhia. “Segundo dados do IBGE, o Brasil tem 28,8 milhões de domicílios com, pelo menos, um cachorro e mais 11,5 milhões com algum gato. Esse cenário revela a maior aproximação afetiva dos brasileiros com esses animais e, consequentemente, a maior conscientização em relação à necessária proteção que eles merecem”, observa.

A promotora de Justiça Monique Mosca lembra que, historicamente, a relação dos seres humanos com cães e gatos se configurou como sendo de posse, mas que, hoje, ela se conforma como uma relação de guarda. “Isso significa que a noção de cuidado se sobrepôs à de propriedade. E, por isso, transformou-se numa relação familiar, que envolve afeto e proteção”.

Monique ressalva que, embora o Código Civil brasileiro ainda categorize os animais como bens móveis, a jurisprudência tem evoluído no sentindo de considerar o interesse e o bem-estar do animal, numa analogia ao direito da criança e do adolescente. “Nos processos de divórcio, em que há conflito sobre quem ficará com o cão ou o gato, já temos decisões estabelecendo que esse direito não decorre da simples compra ou aquisição do animal, mas de quem cuida e dá afeto. É uma importante mudança de paradigmas”.

Cedef
Na visão de Luciana Imaculada, o principal reflexo do processo de conscientização da sociedade sobre os direitos dos animais, no âmbito do MPMG, foi a criação, em 2017, da Cedef, órgão responsável por apoiar as Promotorias de Justiça de todo o estado na adoção de medidas legais, judiciais e extrajudiciais necessárias à proteção da fauna. “A iniciativa, pioneira no país, tem potencializado a atuação dos promotores de Justiça e possibilitado uma integração maior com os outros órgãos e entidades que trabalham na defesa dos animais. Temos alguns exemplos de projetos importantes, de grande abrangência, criados pela Cedef, como o de Gestão em Manejo Populacional de Cães e Gatos, e, mais recentemente, a publicação do Guia Animal não Humano”.

A promotora Anelisa, que se dedica à proteção dos animais no MPMG desde 2014, ressalta que são muitas e diversas as demandas que chegam ao órgão, demonstrando que a sociedade está atenta ao problema de maus-tratos contra os bichos. “Costumo dizer que são demandas que vão de abelha a elefante, todas tratadas com muito amor e empenho. O aumento das demandas demonstram a confiança que a sociedade deposita no Ministério Público”.

Anelisa ressalta, ainda, a importância das parcerias firmadas pela instituição com outros órgãos protetores dos animais para a elaboração de cartilhas informativas e para a disseminação de orientações sobre como se relacionar com os bichos. “Neste campo de atuação, fizemos parceria, por exemplo, com a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e com técnicos da World Animal Protection (WAP), que foram muito positivas”, cita.

Especismo afetivo
Sobre a nova lei, apesar da comemoração pelo avanço legislativo em relação aos cães e aos gatos, os promotores lamentam que a norma não tenha contemplado as outras espécies animais, como previa o projeto original. A restrição feita no projeto de lei seria resultante de pelo menos dois fatores. Um deles seria a menor proximidade afetiva dos brasileiros, de uma maneira geral, com os outros animais e, consequentemente, a menor sensibilização para os direitos das outras espécies, configurando o que é chamado de “especismo afetivo”. E o outro fator seria o medo, por parte de muitos parlamentares, dos reflexos financeiros da medida nas atividades agropecuárias, que respondem por mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

Segundo Luciana Imaculada, o desejo do MPMG é que todos os animais sejam alcançados, como estabelece a Constituição Federal, em seu artigo 225. Também o promotor Ronaldo Crawford aponta a expectativa de que no futuro, em um cenário ideal, todos os bichos ganhem a proteção legal recebida pelos cães e pelos gatos. “Infelizmente, as outras espécies ainda ficarão sob o regime da Lei de Crimes Ambientais, que trata as infrações praticadas contra eles como de menor potencial ofensivo e permite a transação penal”.

Crawford destaca, ainda, o caráter pedagógico e preventivo da pena, para além do aspecto punitivo. “O que precisamos garantir é que os maus-tratos sejam evitados. Instrumentos jurídicos muito leves não são capazes de combater e inibir a prática desses crimes. Por isso, é tão importante ajustarmos a legislação”.

Anelisa ressalta, por sua vez, que, apesar de a conquista legislativa ter sido parcial, cada vitória conquistada na luta pelo equilíbrio ecológico do meio ambiente é uma motivação para continuar. Ela chama a atenção, ainda, para a necessidade multiplicar as ações educativas na sociedade, especialmente nas escolas. “Só através da educação poderemos transformar, em grande medida, essa realidade. Para isso, algumas ações são fundamentais, como a inclusão do tema nos currículos escolares e a formação de professores conscientes, que sejam multiplicadores”.

Por fim, Monique lembra o alerta feito pelo líder pacifista indiano Mahatma Gandhi ao mundo, ainda no século passado, de que “a grandeza de um país e o seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata os seus animais”.

Fonte: MPMG