Estudo, inédito no Brasil, avaliou a segurança e eficácia do vírus zika em combater tumores no sistema nervoso central
Pesquisa realizada pelo Centro de Estudo sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP mostrou que o vírus zika é capaz de combater tumores avançados no sistema nervoso central. O estudo foi feito com cães e os resultados publicados no dia 10 de março, na revista científica Molecular Therapy.
Três animais portadores de tumores espontâneos receberam injeções virais e tiveram melhora significativa dos sintomas neurológicos, além da redução dos tumores e o aumento da sobrevida. “Se o tumor está grande, ele pressiona o cérebro e causa prejuízos ao animal, como a perda dos movimentos nas pernas e incapacidade de se alimentar sozinho”, explica Carolini Kaid, pesquisadora do CEGH-CEL e primeira autora do estudo. “Quando o tumor regrediu, diminuiu também a pressão intracraniana, e os cachorros voltaram a exercer atividades corriqueiras.”
Os cães Pirata, Matheus e Nina eram pacientes da médica veterinária Raquel Azevedo dos Santos Madi, do Hospital Veterinário da Granja Viana, e foram diagnosticados por meio de exames de ressonância magnética. Durante o tratamento, eles ficaram internados e, periodicamente, eram submetidos a exames de imagem, urina, sangue e saliva. O objetivo era medir o tamanho dos tumores e analisar a quantidade de vírus circulantes no organismo.
“Estamos animadíssimos com os resultados”, comemora Mayana Zatz, coordenadora do CEGH-CEL. “Os cães têm doenças muito semelhantes aos seres humanos”, explica.
Carolini Kaid – Foto: ResearchGate
Quando os cientistas iniciaram os estudos com o zika, eles descobriram que o vírus tem um tropismo para células cerebrais de bebês em gestação, as progenitoras neurais, que mais tarde vão se transformar em neurônios. Tropismo é a propensão que um vírus tem de infectar determinado tipo de célula ou tecido. “Mas o que isso tem a ver com tumores?”, indaga Mayana. “Existem tumores cerebrais que são ricos em células progenitoras. Foi daí que surgiu a ideia de testar o vírus zika.
Um estudo anterior com camundongos, também liderado pelo CEGH-CEL, já havia comprovado a eficácia oncolítica do zika, quer dizer, a capacidade que o vírus tem de infectar uma célula tumoral e levá-la à morte. Os pesquisadores injetaram tumores cerebrais humanos – meduloblastoma e tumor teratoide rabdoide atípico (TTRA) – em camundongos “nude”. Esses animais possuem o sistema imunológico deficiente e geralmente morrem após duas semanas. “Quando injetamos o vírus, os tumores regrediram e 1/3 deles desapareceram”, relata Mayana. A pesquisa foi capa da revista Cancer Research.
Depois de concluída a pesquisa, Raquel procurou o grupo da Mayana e relatou ter três pacientes com câncer em estágio avançado. Carolini, decidiu, então, iniciar um ensaio veterinário com esses animais. “A ideia inicial era saber se era seguro fazer um tratamento viral nos cães”, explica Carolini. Pirata, um pitbull de 13 anos e 26 quilos (kg), foi o primeiro a receber uma dose da injeção intratecal na altura do pescoço. O vírus foi inserido no líquido cefalorraquidiano, também conhecido como líquor.
Mayana Zatz – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
De vilão a aliado
Antes do tratamento, o animal estava bastante debilitado. “Ele chegou até nós praticamente em coma”, relata Raquel. “Dias depois de iniciado o tratamento, ele voltou a andar com ajuda, a comer e a beber água”. Pirata não apresentou nenhum sintoma típico de uma infecção generalizada, como diarreia e febre, e permaneceu vivo por 14 dias. Os cientistas comprovaram, então, que o tratamento era seguro.
O segundo caso foi o do Matheus, um boxer de 9 anos e 32 kg, com histórico de convulsões. Ele recuperou a habilidade de pular, subir escadas, jogar bola e interagir com seus donos. O tumor regrediu em torno de 35%. Já Nina, uma dachshund com 12 anos e 6,4 kg, foi a terceira a participar do estudo. Ela era incapaz de reconhecer os donos e de comer e, após a terapia, a redução da massa tumoral foi de 38%. Nina permaneceu viva por 150 dias; Matheus, por 80 dias.
Raquel Madi – Foto: Arquivo pessoal
Diagnóstico comprometido
Estudar cachorros é desafiador, segundo os cientistas. Quando o diagnóstico é feito, geralmente a doença está em fase avançada. “A localização e o tamanho do tumor são avaliados por imagem de ressonância, mas não se sabe de antemão qual é o tipo, porque não se faz biópsia”, explica Mayana. “E tem mais um agravante: são raças diferentes, tumores diferentes, idades diferentes e donos diferentes.”
Por isso, os cientistas só conseguiram identificar qual era o câncer pela análise histológica dos tecidos cerebrais post-mortem. Matheus tinha um oligodendroglioma, e Nina, um meningioma intracranial. No pitbull não foram encontradas células do tumor, sugerindo que ele pode ter sido eliminado.
As análises também mostraram intensa necrose, principalmente na borda do tumor, além da presença de linfócitos T, macrófagos e monócitos. “Os resultados mostraram que o vírus tem um duplo efeito: além de destruir as células cancerosas, ele ativa o sistema imunológico”, relata Carolini.
“Quando você tem um câncer, o sistema imunológico não o reconhece como um invasor”, relata Mayana. “O vírus da zika mostrou ter potencial de ativar o sistema imunológico para que ele reconheça o tumor como um inimigo a ser destruído.”
“Apesar de termos só três animais, já conseguimos ter uma ideia de como um adulto humano responderia a esse tratamento, que é muito semelhante às imunoterapias.” Carolini diz, ainda, que pretende seguir com os estudos veterinários.
Mais informações: e-mail carolini.kaid@usp.br, com Carolini Kaid Davila
Fonte: Jornal da USP
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