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E se fosse eu?

17 de janeiro de 2022|

E se fosse eu, o algoz!

Frederick Douglas nasceu escravizado em Maryland – EUA. Desde criança percebeu que as crianças brancas podiam contar suas idades e irem para a escola. Não conseguia entender por que ele era privado dos mesmos privilégios e nem ao menos podia perguntar. Por estimativa, por algo que ouviu, acreditava ter nascido em 1818. Conseguiu fugir na terceira tentativa. Ainda seriam necessários mais 27 anos até a assinatura da abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, e mais de cem anos de espera e de restrições aos plenos direitos.

Quando terminei de ler a autobiografia de Frederick, comentei alguns trechos com pessoas que estavam próximas. As experiências narradas, em primeira pessoa, têm vida, sentimento e a dor daquele que viveu, daí serem bem impactantes. Todos que ouviram concordaram: que absurdo! Contudo, um desses interlocutores, lançou uma pergunta: já pararam para pensar que é bem provável que, se vivêssemos nesse tempo, nós poderíamos ser um desses escravizadores e consideraríamos tudo dentro da normalidade?

De fato, é bem possível! A consciência contrária à escravidão é recente e só foi possível pois muitos daqueles feitos escravos, inconformados, resistiram e lutaram pela liberdade. Junto a eles, foi preciso também a coragem dos abolicionistas, que manifestavam de diversas formas serem contrários àquele estado de coisas. Para esses, também havia o risco de denúncia e terríveis consequências, afinal, se contrapor ao sistema escravagista era confrontar o pacto selado entre as instituições jurídicas, políticas, religiosas e o miúdo da vida cotidiana.

Se hoje nos causam estranhamento os relatos de Frederick, é graças aos que, naquele presente hostil, sonharam e anunciaram um futuro mais equânime e justo. O grande valor e força dessas pessoas, escravizados e abolicionistas, advém do fato de estranharem o sistema, quando tudo apontava para a sua naturalização e normalização. Hoje, apesar da abolição, o racismo persiste e continua restringindo, por meio dos seus inúmeros mecanismos, o acesso à cidadania plena aos jovens negros e pobres. A história de Frederick não acabou, assim como não acabou a necessidade de identificarmos e denunciarmos esses mesmos padrões de exploração em nome de uma superioridade ou estabilidade seja ela de qual campo vier.

O que do presente será contado no futuro e que causará igual espanto? Quem somos nós na perpetuação de sistemas que roubam a vida, a liberdade e a integridade física, daqueles seres que querem a vida, a liberdade e o próprio bem-estar? Quais leis, práticas e costumes, naturalizam a dor, o sofrimento? Quais políticas limitam o acesso a uma cidadania plena a todos e todas? Quais práticas, modo de viver e consumir que favorecem a destruição dos ecossistemas? São muitas e muitas perguntas. A história continua.

Data de autoria: 10 de janeiro de 2022

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Especialista no Ensino da Educação Física (PUC-Minas) e graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais . Atualmente é diretora de unidade – Colégio Santo Agostinho – Contagem.

Despertar

1 de novembro de 2021|

Aleluia Heringer
Aleluia Heringer
Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais ; Especialista no Ensino da Educação Física (PUC-Minas) e graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais . Atualmente é diretora de unidade – Colégio Santo Agostinho – Contagem.

Me tornei vegana há 16 anos, quando o meu raio de compaixão alcançou tardiamente os animais. Não mudei de uma hora para outra, mas passei por um período de transição que durou três anos. O termo vegan foi utilizado pela primeira vez em 1944 por Donald Watson, e se refere a um modo de vida que busca excluir – na medida do possível e praticável – todas as formas de exploração e crueldade com os animais para qualquer propósito. Esse é o princípio e que, por exclusão, diz o que não é veganismo: uma organização, uma nova religião, novos mandamentos; um novo CNPJ com estatuto, regimento e líderes supremos.

Com base nesse princípio dei início a uma instigante despertar da minha própria vida. Desse processo de mudança – que, diga-se de passagem, é pessoal e intransferível – destaco cinco elementos.

Primeiro, foi como se tivesse mudado de óculos, agora com lentes potentes que iluminaram a existência e a realidade dos animais não humanos que até então ignorava ou desconhecia. Segundo, veio junto com as novas lentes, novos ouvidos que me permitiram discernir sons e grunhidos de gritos de socorro e lamentos. Terceiro, minha mentalidade foi tomando nova configuração, pois a ética passou a questionar a minha própria moral. Um quarto elemento foi que reaprendi a comer, reeduquei o meu paladar, diversifiquei as cores e sabores das minhas refeições. Sempre cozinhei, mas foi preciso abandonar meus livros de receitas e reescrever novos. Testei, errei, mas também aprimorei outras tantas. Gostamos daquilo que já conhecemos. Apesar da plasticidade de nosso cérebro, os neurônios tendem a refinar caminhos já escolhidos. É mais econômico. Socialmente é assim que funciona também. É preciso vontade para pegar novos caminhos.

Por último, nunca fui tão questionada. Quanto mais era bombardeada com perguntas, mais eu lia e me interessava pelo assunto. Quem quer fazer esse percurso precisará lidar com essas tensões, que são positivas e nos mobilizam para o estressar os fundamentos de nossas convicções. Se no seu convívio próximo tem pessoas indo nessa direção, não as tenha como uma ameaça, nem as desmobilizem. Aproxime-se. Sou adepta de atrair e despertar a curiosidade sincera para o princípio da abolição animal, movimento que só fará bem para as pessoas, para o planeta e para os animais, afinal, “eu não preciso e eles não merecem”!

Natureza jurídica dos animais, um comentário aos PLs que tramitam na Câmara de Deputados

20 de outubro de 2021|

Edna Cardozo Dias
Edna Cardozo Dias
Bacharel em Direito pela PUC – Faculdade Mineira de Direito – Belo Horizonte.
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (Primeira tese no Brasil, na área do Direito, sobre direito dos animais- 2000).
Especializada em Criminologia pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais – Belo Horizonte.
Pós graduada em Direito Público pela Fundação Educacional Monsenhor Messias, Faculdade de Direito de Sete Lagoas – MG
É autora da primeira tese de doutorado sobre direito dos animais no Brasil, defendida junto à Faculdade de Direito da UFMG, intitulada “A tutela jurídica dos animais” (1ª edição 2000, 2ª edição atualizada 2018), levando ao mundo acadêmico a primeira semente para a formação de uma teoria dos direitos dos animais.
Foi também a primeira a primeira jurista a lecionar no Brasil a disciplina sobre Direito dos animais, junto à PUC/MG, em 2001.
Foi a primeira coordenadora de Defesa dos Animais, no município de Belo Horizonte, em 2016.
Autora dos livros “SOS ANIMAL” (1983 – Esgotado), “O Liberticídio dos Animais” (1997) e “Crimes Ambientais” (1998 – Esgotado), “A tutela jurídica dos animais” (1ª edição 2000 -, 2ª edição 2018, Editora Amazon.com), e “Manual de Direito Ambiental” (2003 – Esgotado) Editora Mandamentos – BH). Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito, Editor Fórum (2013). Advocacia Animalista na Prática (2021). Viaje comigo pelo Brasil e pelo Mundo (2020)
Foi conselheira seccional da OAB/MG (2013-2015 – 2016/2018).
Presidente fundadora da Comissão dos Direitos dos Animais da OAB/MG – (2013/2018), Presidente fundadora da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/MG. (2006/2013). Membro suplente do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, representante das ONGs da região sudeste, por um mandato. Membro da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de Minas Gerais (1993/1994 e 2001/2003). Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica em 2001. Membro da Comissão Extraordinária de Defesa e dos Direitos dos Animais do Conselho Federal da OAB (2015 e mandato 2019/ 2021).
Presidente fundadora da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal (1983/2016), Vice-Presidente para as Américas da Organisation Internacionale pour la Protection des Animaux, com sede na Suíça. Presidente do Instituto Abolicionista Animal – IAA (2016-2018)
Deu início à campanha que redundou na criminalização dos maus tratos aos animais em 1984, o que culminou no artigo 32 da Lei 9.605/1998. Atuou na aprovação do capítulo do meio ambiente da Constituição Federal de 1988 e foi a representante das ONGs de proteção aos animais na audiência pública realizada em 05/06/1988 na Câmara dos Deputados, em que foi entregue o capítulo do meio ambiente ao Senador relator. Vem trabalhando para alterar o Código Civil brasileiro a fim de mudar o status jurídico dos animais, para que deixem de ser “coisas”.

As relações jurídicas dos homens com os homens, dos homens com a sociedade e o meio ambiente são regidas por leis, que pretendem proteger a vida e os bens materiais e imateriais. O nosso Código Civil brasileiro só prevê dois regimes para regulamentar as relações jurídicas, o de pessoas e o de bens. Não prevê uma categoria de direitos atinentes à tutela do animal como ser vivo e essencial à sua dignidade, como já acontece em legislação de países europeus.

Não sendo reconhecidos como pessoas os animais estão regidos pelo regime jurídico de bens, sejam silvestres, exóticos ou domésticos. Enquanto os animais silvestres são considerados bens de uso comum do povo e bens públicos pela Constituição da República os domésticos, de acordo com o Código Civil são considerados bens móveis/coisas. Os animais silvestres estão equiparados a rios, mares e praças. E os domésticos e exóticos a mesas, cadeiras e outros bens móveis.

Vários países europeus avançaram em sua legislação e já alteraram o seu Código Civil para alterar o status jurídico dos animais.

Os países pioneiros na alteração da natureza jurídica dos animais são a Suíça (desde 2002), a Alemanha (desde 1990), a Áustria (desde 1988) e a França (desde janeiro de 2015). Os três primeiros fazem constar de seu Código Civil que os animais não são coisas ou objetos, só se aplica o regime jurídico de bens quando não houver leis específicas. O Código Civil francês reconhece os animais como seres sensíveis, mas admite aplicação do regime jurídico de bens se não houver lei específica dispondo em contrário. Em Portugal, a Lei n.º 8/2017, de 3 de março estabelece um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil e o Código Penal.

Em 2015 foi proposto pelo Senador Antônio Augusto Anastasia o PLs 351/ 2015 que propôs pequena emenda ao Código Civil brasileiro criando um parágrafo único em que passaria a constar que “os animais não serão considerados “coisas”. Devem ser protegidos por leis especiais e serão regidos pelas leis gerais de bens quando não houver leis específicas.

Em sua justificativa o PLs 351/2015 optou pelo modelo alemão partindo da premissa de que no Brasil, juridicamente, “bem” está ligado à ideia de direitos, sem necessariamente caráter econômico, ao passo que “coisa” está diretamente ligada à ideia de utilidade patrimonial.

O PLs 351 transformou-se no PL 3670/2015 na Câmara de Deputados e foi aprovado por unanimidade na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento sustentável, em 07/12/2017, com parecer do Deputado Ricardo Trípoli.

Em 08/08/2017 foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo como relator o Deputado Rodrigo Castro, em decisão terminativa. Entretanto, o Deputado Valdir Colato (que não se reelegeu) entrou com recurso contra a decisão terminativa e o PL aguarda votação em reunião plenária. O PL não foi arquivado por ter sido aprovado em duas comissões e qualquer deputado pode pedir vista e levar a plenário.

Outro projeto mais ousado foi apresentado pelo deputado Ricardo Izar (PL 6.799/ 2013), que dispõe que “Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”.

Ao ser encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, em 03/02/2016, foi designada relatora a deputada Soraya Santos, que concluiu pela constitucionalidade do referido PL, porém entendeu que a alteração deveria ser inserida na Lei 9.605/98 (Lei de crimes ambientais) e não no Código Civil como proposto. Além disso, o projeto foi alterado no Senado em 2019. Os senadores incluíram emenda estabelecendo que a medida não se aplica a animais usados na agropecuária, em pesquisas científicas e em manifestações culturais.

O texto aguarda agora votação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara, que realizou audiência pública neste outubro de 2021, a pedido do autor do projeto.

Apesar da Constituição da República garantir aos animais direitos fundamentais e a Lei 5.197/1967 regulamentar a proteção dos animais silvestres, falando ambas de conservação das espécies e dos ecossistemas, os animais como indivíduos atualmente só estão protegidos pela lei penal. O direito de propriedade só é limitado, atualmente, pelo Direito Penal que protege os animais dos atos de maus tratos e pelas leis de bem-estar.

De forma que o reconhecimento legal de que os animais são seres sensíveis dotados de sensibilidade, e/ou o reconhecimento expresso na lei de que não coisas viria, sem dúvida, dinamizar a eficácia das leis de proteção aos animais.

Em minha opinião eu prefiro o PL 3670/2015 (PLs 351/15- Senador Anastasia) uma vez que segue os moldes de outros países e, porque a diferença entre coisa e bem já está solidificada na doutrina jurídica. Já a conceituação de categoria sui generis não existe. Além do mais a emenda do Senado ao PL 6054/19 (Deputado Izar) é indiscutivelmente nefasta à proteção de vários animais, podendo inclusive suscitar dúvidas na aplicação da lei. O referido PL acaba por “coisificar” alguns animais ao permitir o uso e a disposição de animais na experimentação animal, na agropecuária e nas manifestações culturais e ao retirar-lhes o direito de acesso ao Judiciário.

O PL 6054, se aprovado, enfraquecerá as leis de proteção aos animais e o dispositivo constitucional que concede aos animais direitos fundamentais, tornando-os sujeitos de direitos.

Que nosso Código Civil deve ser modernizado é indiscutível, mas a meu ver, devemos adotar a emenda mais simples que expresse na lei que “os animais não são coisas”. Dessa forma declaro meu apoio ao PL 3670/2015.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Supremo Tribunal Federal reconhece o Direito à Vida de galos apreendidos

7 de outubro de 2021|

Samylla Mól
Samylla Mól
Mestra em Direito Ambiental. Advogada. Historiadora
Consultora em Direito Animal
Membro do Instituto Abolicionista Animal
Membro da Associação Latino Americana de Direito Animal
Professora, escritora e membro da Academia Marianense de Letras

Embora cruéis com animais e, por isso, vedadas pelo Constituição Federal, as rinhas de galos ainda são uma prática comum no Brasil. Os galos explorados na atividade passam por condicionamentos físico e emocional que configuram maus tratos e são, portanto, considerados crimes.

Ocorre que, quando são feitas apreensões desses animais vem à tona o problema da destinação deles. Para onde levar galos treinados para brigar? Como transportá-los sem que eles se digladiem no caminho? Isso é, de fato, um problema para a autoridade que promover a apreensão.

Por outro lado, insta salientar que a Constituição Federal atribui ao Poder Público o dever de tutelar os animais e a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) cuidou de detalhar como deve ser feita a destinação deles, quando apreendidos.

Neste sentido, o art. 25 da Lei 9605/98 determina que constatados os maus tratos, em se tratando de animais domésticos, cumpre a autoridade que lavrar o Auto de Infração e/ou Boletim de Ocorrência, apreendê-los e encaminhá-los para instituições que os acolham e tratem. O parágrafo segundo do dispositivo assegura, também, que no interregno entre a apreensão e a destinação às essas instituições , cumprirá ao órgão autuante zelar pelo adequado acondicionamento, transporte e bem-estar dos animais.

Entretanto, a hermenêutica do art.25 da Lei 9605/98 foi, por vezes, incompreendida na prática dos julgamentos cotidianos e, diante da existência de decisões judiciais que autorizaram o abate de galos apreendidos e não a destinação definida em lei , o STF foi chamado a se pronunciar, em sede de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 640).

Dentre as decisões que embasaram a propositura de tal ADPF, está a proferida na Comarca de Magalhães, na Bahia, em cujo bojo o Juiz de Direito acata o pedido do Ministério Público para abater 90 (noventa) galos apreendidos em situação de maus tratos. Ao acatar o pedido do parquet, o juiz afirma que a destinação dos animais às entidades de proteção aos animais restou inviabilizada pelo fato deles serem agressivos uns com os outros.

Outra decisão emblemática, analisada na ADPF foi a proferida pela juíza da Comarca de Patrocínio, em Minas Gerais. No bojo do processo, o Promotor de Justiça requereu autorização para “abate de descarte” dos animais quando o consumo humano dos mesmos não fosse recomendado por médico veterinário. A juíza acatou esse pedido da promotoria.

Em decisão proferida em 10 de setembro de 2021, o relator, Ministro Gilmar Mendes, analisou as decisões acima mencionadas e o pedido feito na ADPF ,teceu uma série de considerações acerca da proteção jurídica aos animais no Brasil, da consciência e sensibilidade deles e acatou o pedido para declarar a ilegitimidade das interpretações dos arts. 25, parágrafos 1 e 2 da Lei 9605/98 que autorizem o abate de animais apreendidos em situação de maus tratos.

O ministro foi enfático ao argumentar que não justifica tutelar os galos contra os maus tratos que lhes são impingidos pelos seus criadores e pelos provedores de rinhas para, em seguida, decretar-lhes a morte. Com essa decisão, pode-se afirmar que o STF reconheceu o Direito à Vida dos galos apreendidos em situação de rinha e maus tratos.

Desta feita, uma vez apreendidos, os galos explorados para rinha passam a ter reconhecido direito à sobrevida digna, não podendo serem destinados para o abate, cumprindo ao Poder Público assegurar esse direito.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Hai Kais Animalistas

26 de julho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

Sacrifício Ritual de Animais em Cultos de Religiões de Matriz Africana (RE 494.601-RS) – um retrocesso para o Direito Animal?

9 de julho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

A tendência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, favorável a limitar atividades humanas que usem animais de forma cruel, alegadas como culturais,[1] sofreu uma aparente interrupção, com um precedente de 2019, pelo qual se fixou tese no sentido que “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.[2]

Essa interrupção, no entanto, é aparente, porque o caso submetido à jurisdição constitucional não foi resolvido à luz da regra da proibição da crueldade contra animais, incluída no art. 225, § 1º, VII da Constituição.[3]

Não se trata, portanto, de um precedente de Direito Animal.

O recurso extraordinário foi apresentado pelo Ministério Público Estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que declarou constitucional a Lei Estadual 12.131/2004, a qual acrescentou o parágrafo único ao art. 2º da Lei Estadual 11.915/2003, com a seguinte redação: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.” As vedações do art. 2º dizem respeito a maus-tratos contra animais.

Acontece que, como consta do voto do Ministro Fachin, o recurso do Ministério Público combateu vícios de duas ordens:

(1) inconstitucionalidade formal, decorrente da ofensa ao art. 22, I, da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal, porquanto não poderia o Estado criar causa nova de exclusão de ilicitude, suprimindo o abate de animais em rituais religiosos da incidência do tipo penal do art. 32 da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais);[4]

(2) inconstitucionalidade material, ante a violação do art. 19, I, da Constituição,[5] visto que a norma teria excepcionado apenas os cultos de matriz africana.

Como se pode ver, o Ministério Público gaúcho não se dispôs a discutir, por meio do apelo extraordinário, a proibição do sacrifício ritual à luz da regra disposta na parte final do art. 225, § 1º, VII, da Constituição (vedação da crueldade contra animais). Ainda que os Ministros tenham debatido se ocorre ou não crueldade no sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana,[6] essa não foi a ratio decidendi do julgamento.

Em outras palavras, o debate sobre crueldade contra animais nos sacrifícios rituais configurou obiter dictum, uma vez que essa questão era dispensável à solução do caso submetido à Corte Suprema, considerando o teor as razões recursais.

O precedente fundou-se, determinantemente, pela:

(1) natureza administrativa da lei inquinada, o que lhe coloca sob o albergue da competência legislativa concorrente, nos termos do art. 24, VI, da Constituição; e pela:

(2) proteção especial da liberdade de culto das religiões de matriz africana, dado que, conforme palavras do Ministro Barroso, “tais religiões é que têm sido, historicamente, vítimas de intolerância, de discriminação e de preconceito.”

Ainda que o resultado não motive comemorações para a causa animalista,[7] pode-se concluir que esse precedente não abalou a linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em matéria de Direito Animal e da aplicação da regra constitucional da proibição da crueldade.

Não parece ser um ponto fora da curva

O julgamento simplesmente não se pautou nessa regra, discutida, en passant, como obter dictum, pelo que não se descarta a possibilidade do sacrifício religioso de animais voltar a ser debatido na Supremo Corte, agora sob a ótica dessa regra e do princípio constitucional da dignidade animal.[8]

[1]     Proibição da farra do boi em Santa Catarina: STF, 2ª Turma, RE 153.531-SC, Relator Ministro FRANCISCO REZEK, acórdão lavrado pelo Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 03/6/1997, publicado em 13/3/1998; proibição das rinhais de galo: STF, Pleno, ADIn 2514-7/SC, Relator Ministro EROS GRAU, julgado em 29/6/2005, publicado em 09/12/2005; STF, Pleno, ADIn 3776-5/RN, Relator Ministro CÉZAR PELUSO, julgado em 14/6/2007, publicado em 29/6/2007; STF, Pleno, ADIn 1856/RJ, Relator Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 26/5/2011, publicado em 14/10/2011; proibição da vaquejada:  STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[2]     STF, Pleno, RE 494.601-RS, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Relator para acórdão Ministro EDSON FACHIN, julgado em 28/3/2019, publicado em 19/11/2019.

[3]     Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifos nossos).

[4]     Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. […]

[5]     Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […].

[6]     O Ministro Alexandre de Moraes negou, peremptoriamente, ocorrência de crueldade nesses rituais religiosos e o Ministro Marco Aurélio condicionou o sacrifício do animal ao consumo posterior da carne.

[7]     BRAZ, Laura Cecília Fagundes dos Santos; BRAZ, Helena Maria Fagundes dos Santos Mota; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Sacrifício de animais em cerimônias religiosas na pauta do STF: direito à liberdade religiosa sobreposto ao direito à vida animal não humana. Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, v. 14, n. 3, set./dez. 2019. DOI: 10.5902/1981369432093.

[8]     MAROTTA, Clarice Gomes. Princípio da dignidade dos animais: reconhecimento jurídico e aplicação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998)

15 de junho de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

[1] 

  1. O crime de maus-tratos contra animais após a Lei “Sansão”

O crime de maus-tratos contra animais (rectius: crime contra a dignidade animal) está previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, e recebeu um parágrafo 1º-A pela Lei 14.064/2020.

A redação atual do dispositivo é a seguinte, com destaque nosso:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

A Lei 14.064/2020 foi batizada como “Lei Sansão” (em homenagem ao cão vítima de tortura e amputação das patas traseiras) e resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do Deputado Federal Fred Costa (PATRIOTAS/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.[2]

  1. O tipo qualificado do crime contra cães e gatos

 O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.

No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, “em estabelecimento de segurança máxima ou média” (art. 33, § 1º, I, CP).

Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Ademais, também não se trata de infração de médio potencial ofensivo, pois deixa de ser compatível com a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), em razão de sua pena mínima ser superior a um ano.

Trata-se, portanto, de infração de máximo potencial ofensivo.

Em consequência:

(1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (art. 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (art. 159, CPP);

(2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (art. 313, I, CPP), após audiência de custódia;

(3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (art. 322, CPP);

(4) descabe transação penal (art. 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (art. 394, § 1º, I, CPP);

(5) também não cabe, como já dito, a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.

  1. A violência como elementar do tipo no crime de maus-tratos contra animais

Ao contrário do que se costuma dizer, não é o meio ambiente, a natureza, o equilíbrio ecológico ou a biodiversidade os bens diretamente protegidos pela norma penal contida no art. 32 da Lei 9.605/1998. Muito menos algo como o “sentimento de solidariedade para com os animais”. A criminalização das condutas apontadas no tipo, simples ou qualificado, decorre da regra da proibição da crueldade contra animais, estabelecida no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, da qual se revelam o valor intrínseco de todo animal e a dignidade animal individual, independentemente das suas funções ecológicas.[3]

Destarte, vislumbra-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime. Apenas como sujeito passivo mediato do crime poder-se-ia cogitar o meio ambiente, bem como seus consectários.

Considerando isso, deve-se perceber que todo crime tipificado no art. 32 da Lei  9.605/1998 é doloso e violento. A violência intencional, nesse caso, é dirigida ao animal vítima do crime. Não há abuso, maltratamento, ferimento, mutilação ou experimentação dolorosa indevida sem violência contra o animal.

A violência contra os animais não é limitada ao sofrimento físico diretamente infligido, como no caso do ferir ou do mutilar, constantes do tipo penal. Os maus-tratos, nas suas diferentes caracterizações,[4] o abuso e a utilização indevida em experimentos científicos dolorosos também são condutas humanas violentas contra animais, descritas no tipo, nas quais o sofrimento animal pode ser tanto físico, como psíquico.[5]

Vale sempre relembrar que os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais.[6]

  1. O acordo de não persecução penal após a Lei 13.964/2019

O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor.[7]

A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.

Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no art. 28-A do Código de Processo Penal.

Da leitura do referido art. 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (grifo nosso); (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O § 2º do art. 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.

  1. Da impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos

É evidente que, no tipo simples do crime de maus-tratos contra animais são cabíveis diversas medidas despenalizadoras, como a transação penal, dado que, por enquanto, se trata de crime de menor potencial ofensivo, submetido às branduras dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Descabe o acordo de não persecução penal nesse caso (art. 28-A, § 2º, I, CPP), até por ser desnecessário.

Mas, em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do art. 32, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado se tratar de crime de máximo potencial ofensivo.

Ocorre que também se deve concluir não ser cabível o acordo de não persecução penal para esse tipo qualificado de crime contra animais.

Isso porque, como visto, um dos requisitos obrigatórios para permitir o acordo e impedir a persecução penal é que o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça. Leia-se bem o caput do art. 28-A do CPP: não se fala em violência ou grave ameaça à pessoa, como que para se referir tão somente à violência ou grave ameça a seres humanos, os quais são pessoas naturais.

Quando a lei penal quer se referir, especialmente, à violência contra pessoa, o faz expressamente, como no art. 318-A, I, do Código de Processo Penal, no art. 112 da Lei de Execuções Penais e, dentre outros, nos arts. 16; 44, I; 71, par. ún.; 83, par. ún. e 157 do Código Penal.

Isso não quer dizer que nas hipóteses em que a lei penal fala em violência, sem se referir à pessoa, não esteja se referindo à violência contra o ser humano. Na maioria das vezes efetivamente está implícita essa referência, especialmente quando há  menção a alguém (v. g., art. 146, 158 e 197 do Código Penal).

O que se chamar a atenção é que nas hipóteses de violência em que não há a referência expressa à pessoa, é possível, especialmente em relação às normas processuais penais (normas não incriminadoras), proceder a uma interpretação extensiva (art. 3º, CPP), para abranger todas as possibilidades de violência contra seres sencientes, como os cães e gatos, não se limitando aos seres humanos.

Esse aporte interpretativo pós-humanista para o Direito Processual Penal é adequado e razoável, considerando a crescente sensibilização social para o tema da violência contra animais, do que é demonstração a própria Lei Sansão.

É por essa razão que não se deve admitir o acordo de não persecução penal em relação ao crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos, considerando que a violência contra os animais é ínsita ao tipo penal. O art. 28-A do CPP não se refere à violência ou grave ameaça à pessoa, mas, de forma mais ampla, à violência ou grave ameaça em geral, o que deve abranger as práticas violentas dirigidas a qualquer ser vivo senciente (especialmente cães e gatos), dada a existência de tipos penais – como o do art. 32 – que protegem a dignidade para além dos seres humanos.

Consequentemente, o acordo de não persecução penal que envolva o crime do art. 32, § 1º-A, da Lei 9.605/1998 não deve ser homologado pelo juiz criminal, dado envolver infração penal com violência a ser senciente (cães ou gatos), aplicando-se o disposto no § 7º do art. 28-A do CPP.

Contra a decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, cabe recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, XXV, do CPP, com redação dada pela Lei 13.964/2019.

Por fim, seria importante abrir à vítima a possibilidade de controle sobre o acordo de não persecução penal, postulando a sua revisão pelas instâncias superiores do próprio Ministério Público, na forma preconizada pelo art. 28, § 1º, do CPP, com a redação dada pela Lei 13.964/2019.[8] Com o mesmo propósito, poder-se-ia cogitar de uma apelação supletiva para o ofendido contra a decisão que homologar o acordo, dado se tratar de decisão definitiva (art. 593, II, CPP).

[1]           Artigo escrito com a colaboração de Lucas Eduardo de Lara Ataide, advogado e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal, presidido pelo Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos.

[2]           Para uma visão mais completa sobre o tema, consultar, ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; ATAIDE, Lucas Eduardo de Lara. Comentários sobre o crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Jus Navigandi, Teresina, nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86787/comentarios-sobre-o-crime-qualificado-de-maus-tratos-contra-caes-e-gatos-art-32-1-a-lei-9-605-1998#:~:text=Al%C3%A9m%20da%20pena%20privativa%20de,pena%20restritiva%20de%20direitos%20(art. Acesso em: 27 jan. 2021.

[3]           Cf. STF, Pleno, ADI 4983, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[4]           Nas hipóteses catalogadas, por exemplo, no art. 3º do Decreto 24.645/1934 ou no art. 5º da Resolução CFMV n.º 1.236/2018.

[5]           A violência, de fato, há muito não se concebe como restrita ao fenômeno da agressão física. Veja-se, apenas a título de ilustração contemporânea, o quadro de violências possíveis contra a mulher, no âmbito da violência doméstica e familiar, preconizado pelo art. 7º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

[6]           Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/06/declaracao-de-cambridge-portugues.pdf. Acesso em: 14 jul. 2020.

[7]           Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, HC 636.279/SP, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK, julgado em 09/03/2021, publicado em 23/03/2021.

[8]           Sobre a eficácia desse novo dispositivo, ver: STF, Decisão Monocrática, ADI/MC 6288, 6299, 6300 e 6305/DF, Min. LUIZ FUX, 22/01/2020. Sobre o tema do novo arquivamento do inquérito policial, consultar, ARENHART, Bianca Geórgia Cruz. Uma leitura constitucional do novo modelo de arquivamento do inquérito policial. Consultor Jurídico, 2 abr. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-02/arenhart-modelo-arquivamento-inquerito-policial. Acesso em: 12 jun. 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

Capacidade processual dos animais e o Projeto de Lei 145/2021

27 de maio de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.
  1. Introdução

 Trata-se do Projeto de Lei (PL) n.º 145/2021, de autoria do Deputado Federal Eduardo Costa (PTB/PA), protocolado na Câmara dos Deputados no dia 3 de fevereiro de 2021, o qual “Disciplina a capacidade de ser parte dos animais não-humanos em processos judiciais e inclui o inciso XII ao art. 75 da Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, para determinar quem poderá representar animais em juízo.”

A redação do projeto é a seguinte:

Art. 1º. Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.

Parágrafo único. A tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva.

Art. 2º. O art. 75 da Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil passa a vigorar acrescido do inciso XII, com a seguinte redação:

“Art. 75………………………………………………………..

XII – os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.”

Art. 3º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Art. 4º. Revogam-se as disposições em contrário.

 O anteprojeto acolhido pelo Deputado Eduardo Costa, que resultou no PL 145/2021 da Câmara, foi por nós redigido, no âmbito do Programa de Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), vinculado ao Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Faculdade de Direito, e do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do Programa de Pós-Graduação em Direito da mesma Universidade, contando com a imprescindível colaboração da Dr.ª Maria José Vieira de Carvalho Cunha, do Ministério Público do Estado do Pará, e do Dr. Anderson Furlan Freire da Silva, Juiz Federal da 4ª Região, ambos com destacada atuação nas áreas do Direito Ambiental e do Direito Animal.

  1. Capacidade de ser parte como pressuposto processual

A capacidade de ser parte,[1] entendida como “a capacidade, ativa ou passiva, de ser sujeito da relação jurídica processual”[2], considerada pressuposto processual de existência,[3] não ocupa grande parte das preocupações dos processualistas, que têm aceitado essa categoria, sem maiores indagações críticas sobre o seu fundamento normativo,[4] a sua função na teoria processual e a sua aplicação pragmática.

Talvez essa desimportância da categoria seja resultado da sua parca manifestação empírica, como um “falso-problema”, existente apenas para resolver os casos de demandas formuladas por ou em face de pessoa já falecida.[5]

Mas a capacidade de ser parte renasce em relevância a partir do fenômeno da judicialização terciária do Direito Animal,[6] ou seja, da existência de animais demandando em juízo, em nome próprio, seus direitos subjetivos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.[7]

A questão que aparece, em primeiro lugar, nessas novas demandas, é exatamente a capacidade de ser parte dos animais: pode um animal, vítima de violência ou de maus-tratos, postular, em nome próprio (devidamente representado), uma indenização contra o agressor?

As primeiras respostas do Poder Judiciário têm sido negativas,[8] ao argumentando central de que o CPC não contempla a capacidade de ser parte dos animais.[9]

  1. A capacidade de ser parte dos animais no direito brasileiro

Se o ordenamento jurídico brasileiro reconhece direitos subjetivos para animais – sobretudo individuais, diga-se logo[10] – não parece possível sonegar-lhes acesso à jurisdição pelo fundamento da incapacidade de ser parte.

A Constituição Federal garante a todos – independentemente de raça, sexo, espécie[11] ou outra discriminação negativa – o exercício de ação em caso de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, Constituição). Aliás, bem compreendida, “A capacidade de ser parte decorre da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário, prevista no inciso XXXV do art. 5º da CF/88”[12], não se podendo “dar à lei interpretação que impeça ou dificulte o exercício da garantia constitucional do direito de ação”[13], de modo que não apenas as pessoas, ou entes dotados de personalidade jurídica, têm direito de ação.[14]

Quem tem direitos tem direito constitucional de ir a juízo reivindicá-los!

Evidentemente, a inexorável capacidade de ser parte dos animais não se confunde com a sua capacidade de ir a juízo. Tomando-os por absolutamente incapazes, dado que não possuem meios para exercer diretamente qualquer ato da vida civil, os animais somente poderão ser admitidos em juízo mediante representação.

A representação dos animais em juízo, até o momento, tem se dado na forma do Decreto 24.645/1934, o qual, no seu art. 2º, § 3º, estabelece que “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.”[15]

  1. O Projeto de Lei 145/2021

Conforme o art. 1º, caput, do projeto, “Os animais não-humanos têm capacidade de ser parte em processos judiciais para a tutela jurisdicional de seus direitos.”

Não obstante seja possível afirmar que, por derivação da garantia constitucional do acesso à justiça, os animais, enquanto sujeitos de direitos, ostentam capacidade de ser parte, a resistência dos juízes em admitir que animais demandem em nome próprio justifica o novo preceito.

Infelizmente, no Brasil, é preciso afirmar por lei algo que já se poderia admitir por uma adequada interpretação constitucional.[16]

Mais do que isso, o novo preceito inclui, na ordem do dia dos processualistas, uma nova consideração sobre a tutela jurisdicional dos animais, não apenas no plano da tutela individual, como também no da coletiva.

Assim, ainda que os direitos animais sejam preponderantemente individuais (para a proteção da dignidade animal),[17] não se pode descartar a possibilidade da tutela coletiva dos direitos animais, especialmente na qualidade de direitos individuais homogêneos, o que justifica a inclusão do parágrafo único no artigo de abertura do projeto, para deixar claro que “A tutela jurisdicional individual dos animais prevista no caput deste artigo não exclui a sua tutela jurisdicional coletiva.”

Rompido o obstáculo quanto à capacidade de ser parte dos animais (objeto do art. 1º do projeto), é preciso dar conta da capacidade de estar em juízo, definindo, dentro do Código de Processo Civil, quais são os legitimados para representar judicialmente os animais.

É difícil continuar dependendo do Decreto 24.645/1934 para essa tarefa, dada as polêmicas que ainda gravitam sobre essa lei,[18] inclusive acerca da sua vigência atual.[19]

O Código de Processo Civil é o locus adequado para a definição da capacidade processual, especialmente a capacidade de estar em juízo. Por isso, justifica-se o art. 2º do projeto, propondo o acréscimo do inciso XII ao art. 75 do CPC, para estabelecer que serão representados em juízo, ativa e passivamente, “os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.”

A inspiração para o novo inciso do CPC é o próprio art. 2º, § 3º do Decreto referido, há muito tempo evocado para a tutela jurídica dos animais, possibilitando que a representação processual dos animais se dê por obra do Ministério Público[20], dos responsáveis diretos pelo animal (tutor ou guardião) e pelas associações de proteção dos animais. Acrescentou-se a essa lista a Defensoria Pública, dada a sua vocação constitucional para a defesa dos mais vulneráveis (art. 134, Constituição).

  1. Considerações finais

Vale a pena transcrever a parte final da justificação do projeto apresentado, como conclusão deste pequeno artigo:

“Se até uma pessoa jurídica, que muitas vezes não passa de uma folha de papel arquivada nos registros de uma Junta Comercial, possui capacidade para estar em juízo, inclusive para ser indenizada por danos morais, parece fora de propósito negar essa possibilidade para que animais possam ser tutelados pelo Judiciário caso sejam vítimas de ações ilícitas praticadas por seres humanos ou pessoas jurídicas.”

“Com a aprovação deste projeto de lei, o Congresso Nacional pacificará essas questões processuais, possibilitando uma ampliação significativa da tutela jurisdicional dos animais, o que refletirá na proteção jurídica ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito fundamental de todos, conforme estabelecido no art. 225 da Constituição Federal.”

É crescente a convicção de que um mundo melhor e uma sociedade mais livre, justa e solidária depende de um pós-humanismo, no qual as qualidades humanas são “consideradas fruto da relação com os outros seres viventes, assim, o homem deve reconsiderar tal relação, incentivando-a e valorizando as alteridades. O que é rejeitado é exatamente a pretensão de considerar o homem como único protagonista do universo.”[21]

O Projeto de Lei 145/2021, do Deputado Eduardo Costa, é pós-humanista.

A aprovação do projeto pelo Congresso Nacional será um avanço civilizatório sem precedentes, permitindo que o próprio Direito Processual Civil se abra para a realização de uma tutela jurisdicional mais abrangente, mais inclusiva e não-especista.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

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[1]           Essa designação é utilizada pelo art. 6º da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola, ao passo que o art. 11º do Código de Processo Civil português prefere o termo personalidade judiciária.

[2]                 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense; Brasília: INL, 1973, tomo I, cit., p. 243.

[3]           Alguns autores, no entanto, não catalogam a capacidade de ser parte dentre os pressupostos processuais, nem mesmo dentre os de existência, como é o caso de Marcelo Abelha Rodrigues (Elementos de Direito Processual Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 1, 2003, p. 272 et seq.).

[4]           Nenhum dos Códigos de Processo Civil unitários brasileiros (1939, 1973 e 2015) contemplou a capacidade de ser parte, apenas se referindo à capacidade processual como capacidade de estar em juízo (por si só ou por representante/assistente). O Código de Processo da Bahia (Lei 1.121/1915), no período anterior à unificação do direito processual, nitidamente inspirado no § 50 do ZPO alemão, previa a capacidade de ser parte, separada da capacidade de estar em juízo, em seu art. 1º: “podem ser partes todos aqueles a quem a lei civil atribui capacidade jurídica.”

[5]          DIDIER JÚNIOR, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 119-120. A hipótese se apresenta, inclusive, em Pontes de Miranda: “Se o processo foi intentado pelo procurador quando já morto o autor, não houve relação jurídica processual.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. XXXIII).

[6]           A judicialização é o fenômeno da realização de direitos por meio do processo judicial. É possível apontar três níveis de judicialização do Direito Animal: (1) a judicialização primária, pela qual os animais são defendidos como parte da fauna e da biodiversidade, ou seja, pela sua função ecológica, por meio de instrumentos processuais de tutela coletiva, como a ação civil pública (Lei 7.347/1985); (2) a judicialização secundária, pela qual os animais passam a ser defendidos em juízo como indivíduos conscientes e sencientes, porém, por meio de ações titularizadas pelos seus responsáveis humanos, como nas ações envolvendo guarda compartilhada de animais após divórcio ou separação; (3) a judicialização terciária ou judicialização estrita do Direito Animal, por meio da qual os animais defendem seus direitos em nome próprio. Sobre o tema, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais. Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 46, n. 313, p. 95-128, mar. 2021. p. 119-120.

[7]           A legislação estadual, no âmbito da competência normativa concorrente para proteção da fauna (art. 24, VI, CF), já contempla o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos, em graus variados, a exemplo da Lei catarinense, em relação a cães e gatos (art. 34-A da Lei 12.854/2003, incluído pela Lei 17.485/2018 e alterado pela 17.526/2018), da Lei gaúcha, em relação aos animais domésticos de estimação (art. 216 da Lei 15.434/2020) e da Lei mineira, em relação a todos os animais, estabelecendo que “Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus a tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica” (Lei 22.231/2016, atualizada pela Lei 23.724/2020). Mas a lei estadual inequivocamente mais avançada e abrangente do Brasil, em termos de especificação de direitos subjetivos animais, é o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba (Lei Estadual 11.140/2018), com a explícita adoção da linguagem dos direitos, conforme o seu art. 5º: “Todo animal tem o direito: I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas; II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida; III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar; IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados; V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.” No âmbito federal, destaca-se o PLC 6.054/2019 (anterior 6.799/2013), de autoria do Deputado Ricardo Izar, já aprovado em ambas as casas do Congresso Nacional, o qual estabelece, em seu art. 3º, que “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.”

[8]           Para um quadro sobre as ações já propostas com animais demandantes, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O Decreto 24.645/1934 e a capacidade de ser parte dos animais no processo civil. Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, v. 21, n. 129, p. 83-101, jan./fev. 2021; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais, cit., p. 120-122.

[9]           O primeiro acórdão que temos notícia, no que concerne à judicialização terciária do Direito Animal, provém do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual, apesar de reconhecer que o animal demandante é sujeito de direitos, negou-lhe a capacidade de ser parte. Confira-se a ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. LEGITIMIDADE ATIVA DE CACHORRO DE ESTIMAÇÃO. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE CAPACIDADE DE SER PARTE. GRATUIDADE JUDICIÁRIA AOS AUTORES HUMANOS. NECESSIDADE EVIDENCIADA. 1. Ainda que a legislação constitucional e infraconstitucional inclusive a estadual, garanta aos animais uma existência digna, sem crueldade, maus tratos e abandono no caso dos de estimação, ela não lhes confere a
condição de pessoa ou personalidade judiciária. O novo CPC apenas reconhece a capacidade de ser parte às pessoas e entes despersonalizados que elenca em seus arts. 70 e 75, não incluindo em qualquer deles os animais. Assim, ainda que sujeito de direitos, o cão Boss não possui capacidade de ser parte, devendo ser mantida a sua exclusão do polo ativo da lide. 2. […]. Agravo de instrumento parcialmente provido. (TJRS, 9ª Câmara Cível, AI 5041295-24.2020.8.21.7000/RS, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 7 dez. 2020).

[10]         Quando o legislador constituinte originário estabeleceu a vedação às práticas cruéis contra animais, no inciso VII do § 1° do art. 225 da CF, fê-lo em razão de reconhecer que esses seres são sencientes e que, por tal motivo, merecem amparo proibitivo relativo à crueldade. Sendo assim, além do direito subjetivo de não ser submetido à crueldade, tal dispositivo revela, a um só tempo – dentre outros –, os princípios da dignidade e da universalidade de proteção. A respeito dos princípios do Direito Animal, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Princípios do Direito Animal brasileiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador, v. 30, n. 1, p. 106-136, jan./jun. 2020.

[11]         A palavra especismo foi criada por Richard Ryder (speciesism) e difundida por Peter Singer, a partir dos anos 70 do século XX, para significar “o preconceito ou a atitude de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie e contra os de outras.” (SINGER, Peter. Libertação animal. Salvador: Lugano, 2004, p. 8).

[12]         DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 20. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, v. 1, p. 369.

[13]         NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 133-134.

[14]         GERAIGE NETO, Zaiden. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional: art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 39-41.

[15]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A capacidade processual dos animais, cit., passim; ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 15, n. 2, p. 47-73, maio/ago. 2020, disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/37731/21502. Acesso em: 4 fev. 2021.

[16]         Como se sabe, “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224).

[17]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018; MAROTTA, Clarice Gomes. Princípio da dignidade dos animais: reconhecimento jurídico e aplicação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[18]         O Decreto 24.645/1934 não é um simples Decreto, mas verdadeira Lei ordinária, em todos os seus termos, e não apenas em relação às disposições penais. Por essa razão, permanece em vigor, pois somente Lei aprovada pelo Congresso Nacional poderia tê-lo revogado. Sobre o assunto, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais, cit., passim; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno jurídico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, p. 149-169, jul. 2001.

[19]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; TOMÉ, Tiago Brizola Paula Mendes. Decreto 24.645/1934: breve história da “Lei Áurea” dos animais, cit., passim.

[20]         ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; NOVINSKI, Monalyse Andressa. O Ministério Público como guardião dos direitos fundamentais animais. Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, n. 13, p. 193-214, dez. 2020.

[21]         MARCHESINI, Roberto. O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade. Revista do Instituto Humanitas Unisinos (on-line), São Leopoldo, ed. 200, 16 out. 2006. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao200.pdf. Acesso em: 22 maio 2020.

CÓDIGO DE DIREITO E BEM-ESTAR ANIMAL DO ESTADO DA PARAÍBA: Código-modelo de Direito Animal para o Brasil

14 de maio de 2021|

Vicente de Paula Ataíde Junior
Vicente de Paula Ataíde Junior
Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.
  1. O Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba foi instituído pela Lei Estadual 11.140, de 8 de junho de 2018,[1] com entrada em vigor no dia 7 de outubro de 2018,[2] oriundo do Projeto de Lei 934, distribuído em 7 de junho de 2016, de autoria do Deputado Estadual Antonio Hervázio Bezerra Cavalcanti (PSB),[3] aprovado por unanimidade,[4] com veto parcial, apresentado pelo Governador do Estado, mantido também de forma unânime.[5]

O texto-base do anteprojeto que deu origem à tramitação legislativa foi escrito pelo Prof. Francisco José Garcia Figueiredo, da Faculdade de Direito da UFPB e presidente/fundador da Comissão de Direito Animal da OAB/PB, reconhecido, nacionalmente, como uma das mais importantes autoridades em Direito Animal do Brasil.[6]

Esse texto, antes mesmo de ser submetido à Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi objeto de amplo e democrático debate com a sociedade paraibana, em várias audiências públicas, inclusive em sessões especiais da própria Assembleia Legislativa, com a participação de várias pessoas e entidades, dos setores público e privado, inclusive do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Paraíba.[7]

Talvez a prova mais contundente do processo democrático de formulação do respectivo projeto de lei esteja representada pelo fato de que as objeções ao texto, colhidas durante as audiências públicas, acabaram não sendo incorporadas ao Projeto de Lei 934/2016, tais como a proibição do tráfego estadual de veículos com tração animal e a proibição da vaquejada.

  1. Trata-se, sem sombra de dúvidas, da legislação mais avançada do Brasil – e sem igual no mundo – em termos de direitos animais.

É a primeira lei brasileira a catalogar, expressamente, direitos subjetivos aos animais não-humanos.

Segundo o art. 5° do Código paraibano,

Art. 5º. Todo animal tem o direito:

I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas;

II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida;

III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar;

IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados;

V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.

Esse catálogo mínimo de direitos não é reservado apenas para cães e gatos, nem mesmo apenas para animais vertebrados, mas inclui os invertebrados, como polvos e caranguejos, muito além do que, originalmente, o Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, editado por Getúlio Vargas, – o primeiro estatuto brasileiro dos animais , poderia conceber.

  1. É possível uma lei estadual reconhecer direitos a animais não-humanos?

Sim, porque a Constituição Federal de 1988 permite e a isso conduz.

Ao disciplinar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição introduziu a regra da proibição das práticas cruéis contra animais, paralelamente à regra da proibição das práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna (art. 225, §1º, VII).

Com isso, a Constituição protege os animais em duas frentes: pelo Direito Animal, no qual os animais são considerados seres conscientes[8] e dotados de dignidade própria, razão pela qual interessam como sujeitos-indivíduos e a sua proteção se faz independentemente da sua relevância ecológica; e pelo Direito Ambiental, no qual os animais são considerados como espécie, enquanto elementos da biodiversidade, imprescindíveis ao equilíbrio ecológico e à sadia qualidade de vida.[9]

Além disso, é a Constituição Federal que reparte a competência legislativa para tratar dos animais (“fauna”) entre União e Estados (art. 24, VI), limitando a competência da União para editar normas gerais.[10]

Isso tudo significa que o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba realiza a Constituição brasileira melhor do que o Código Civil de 2002, o qual, atrasado nesse e em outros aspectos, ainda enxerga os animais não-humanos, cartesianamente, como coisas[11] ou bens semoventes.[12]

  1. Os animais, segundo o art. 2º da Lei paraibana, são “seres sencientes e nascem iguais perante a vida, devendo ser alvos de políticas públicas governamentais garantidoras de suas existências dignas, a fim de que o meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida dos seres vivos, mantenha-se ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.”

Mas não apenas conceitualmente o Código da Paraíba é modelar.

Trata-se de verdadeira codificação das principais regras e princípios de Direito Animal,[13] enfrentando, com coragem e inovação, dentro do que lhe reserva a Constituição Federal, os principais desafios da proteção animal, coibindo o abuso e a crueldade, sem comprometer o desenvolvimento econômico e social do Estado da Paraíba.

São 119 artigos, divididos em três Títulos.

O Título I constitui uma verdadeira Parte Geral do Direito Animal, com seus conceitos fundamentais, o elenco dos direitos animais, além das bases para uma Política Estadual de Política Animal.

A parte geral inclui um extenso rol de tipificações de maus-tratos a animais (art. 7º, §§ 2º e 3º), além de uma série de condutas proibidas (art. 8º).

O Título II pode ser considerado uma Parte Especial: trata das peculiaridades dos animais silvestres, dos animais domésticos e dos animais em produção, em entretenimento, em veículos de tração/montaria, em transporte, no comércio e em experimentos científicos.

Nessa parte especial, dentre outras medidas de destaque, proíbe: qualquer modalidade de caça (art. 21), a cirurgia de cordotomia em cães e gatos (art. 50), a utilização de cães para fins de vigilância, segurança, guarda patrimonial e pessoal nas propriedades públicas e privadas (art. 51), a permanência, utilização e/ou exibição de animais de qualquer espécie em circos, espetáculos e eventos (art. 63).

A par de proibições, estabelece o regime de tutela responsável de animais domésticos (art. 22 e seguintes), restringe, com cautela justificável, a prática da eutanásia aos animais portadores de enfermidade de caráter zoonótico ou infectocontagioso incurável e que coloque em risco a saúde e a segurança de pessoas e/ou de outros animais (art. 25, I), bem como institui a cláusula de escusa de consciência à experimentação com animais (art. 93).

O Título III contempla, além de disposições finais, o Direito Animal sancionador, não-criminal, prevendo as infrações administrativas e as respectivas sanções pela violação, inclusive por pessoas jurídicas, públicas e privadas, das regras do Código.

  1. O Código de Direito Animal da Paraíba é um Código para o Brasil.

É um modelo que realiza a vontade constitucional brasileira e coloca o Brasil na vanguarda das legislações mundiais de proteção animal. Deve ser implementado em todos os seus artigos. Deve ser copiado e seguido por outros Estados da Federação ou, quem sabe, inspirar um Código Federal Geral nas mesmas bases conceituais e normativas, que replique, em todos os cantos do território nacional, a concepção dos animais como sujeitos de direitos fundamentais.

Leis como essa é que reafirmam a existência de um Direito Animal positivo no Brasil.[14]

Mas, evidentemente, uma lei tão avançada e ambiciosa, comprometida com os direitos fundamentais e com a realização da Constituição, alçando todos os animais não-humanos à qualidade de sujeitos de direitos, já passou a receber resistências dos setores mais atrasados da sociedade brasileira.[15]

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[1]              Publicada no Diário Oficial do Estado da Paraíba (DOE-PB) de 9 de junho de 2018, com período de vacância de 120 dias. Disponível em: http://static.paraiba.pb.gov.br/2018/06/Diario-Oficial-09-06-2018.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[2]              Considerando os termos do art. 8º, §1º da Lei Complementar 95/1998, com a redação dada pela Lei Complementar 107/2001.

[3]              Na Comissão Especial da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, instituída para apreciar o projeto de Código, a relatoria coube à Deputada Estadual Estela Bezerra (PSB), a qual, apesar da coincidência de sobrenomes, não tem parentesco com o autor do projeto, Deputado Hervásio Bezerra.

[4]              Conforme informações obtidas no site da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/consultas/materia/materia_mostrar_proc?cod_materia=50416. Acesso em: 13  maio 2021.

[5]              Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/materia/58106_texto_integral. Acesso em:  13  maio 2021.

[6]              A Comissão de Direito Animal da OAB-PB, sob a liderança do Prof. Francisco José Garcia Figueiredo, realizou várias ações importantes, em defesa dos animais, no ano de 2018: atuou pela apuração dos responsáveis pela matança de cães, no chamado “Caso de Igaracy” (março/2018): https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/mais-de-30-cachorros-sao-sacrificados-por-prefeitura-em-igaracy-sertao-da-pb.ghtml ; interveio para coibir a matança de gatos junto à Prefeitura Municipal de João Pessoa (maio a junho/2018): https://correiodaparaiba.com.br/crime/em-menos-de-dois-meses-21-gatos-sao-mortos-no-centro-administrativo-municipal/ ; denunciou que mais de 300 gatos foram mortos em João Pessoa desde janeiro de 2017: https://www2.pbagora.com.br/noticia/policial/20180724083123/mais-de-300-gatos-ja-foram-chacinados-em-jp-desde-janeiro-de-2017 ; bem como trouxe, para João Pessoa/PB, o VI Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal, realizado no Centro Cultural José Lins do Rêgo: http://www.ufpb.br/antigo/content/jo%C3%A3o-pessoa-sediar%C3%A1-evento-internacional-de-bio%C3%A9tica-e-direito-animal.

[7]              Conforme constam das atas das respectivas sessões e reuniões ordinárias das audiências públicas.

[8]              Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto original, em inglês, disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[9]              Essa dualidade já foi reconhecida pelo STF, por ocasião do julgamento da ADIn 4983 (“ADIn da vaquejada”), conforme voto do Min. Luis Roberto Barroso: “A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 6/10/2016, publicado em 27/4/2017, grifos nossos).

[10]            Sobre a repartição de competências em matéria de proteção ambiental: SARLET, Ingo Wolfang. O sistema de repartição de competências na CF. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 821-828.

[11]            A Áustria foi pioneira em incluir, no seu Código Civil, em 1988, um dispositivo afirmando que os animais não são coisas (tiere sind keine sachen), protegidos por leis especiais (§285a do ABGB); no mesmo sentido, em 1990, foi inserido o §90a no BGB alemão; em 2003, também no art. 641a do Código Civil suíço; de forma diferenciada foi a alteração do Código Civil francês, em 2015, dispondo, em seu art. 515-14, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade (Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité.); na mesma linha do direito francês, mudou o Código Civil português, em 2017, estabelecendo que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (art. 201º-B).

[12]            No Brasil, há o Projeto de Lei da Câmara 6.054/2019 (nº do Senado: 27/2018; nº original da Câmara: 6799/2013), de autoria dos Deputados Ricardo Izar e Weliton Prado, o qual estabelece que “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa” (art. 3º). Esse projeto já foi aprovado na Câmara e no Senado, mas, como recebeu emenda aditiva no Senado (foi incluído um parágrafo único ao art. 3º: “A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.”), retornou à Câmara para análise da modificação. Note-se que, pelo projeto, todos os animais passam a ser considerados sujeitos de direitos, ainda que sem personalidade jurídica, não podendo mais ser tratados como coisas, modificando a interpretação comumente dada ao Código Civil brasileiro. Não obstante, conforme emenda aprovada no Senado, alguns animais não poderão gozar e obter a tutela jurisdicional dos seus direitos, exceção essa, no entanto, frontalmente inconstitucional, pois viola a garantia do acesso à justiça, conforme art. 5º, XXXV, da Constituição. A emenda do Senado, aliás, expressamente reconhece a dignidade animal. Por essas razões, espera-se que esse projeto seja definitivamente aprovado, sancionado e promulgado, preferencialmente sem a inconstitucional emenda senatorial, eliminando eventuais dúvidas sobre a existência de direitos animais. Texto final do artigo aprovado disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/08/parecer-198-2019.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

[13]            ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018.

[14]            Além do Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba, outras leis estaduais, no âmbito da competência normativa concorrente para proteção da fauna (art. 24, VI, CF), já contemplaram o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos,
em graus variados, a exemplo da Lei catarinense, em relação a cães e gatos (art. 34-A da Lei 12.854/2003, incluído pela Lei 17.485/2018 e alterado pela 17.526/2018), da Lei gaúcha, em relação aos animais domésticos de estimação (art. 216 da Lei 15.434/2020) e da Lei mineira, em relação a todos os animais, estabelecendo que “Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus a tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica” (Lei 22.231/2016, atualizada pela Lei 23.724/2020).

[15]            Em sessão plenária ocorrida no dia 5 de junho de 2019, o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (TJPB), a partir do voto do relator, Desembargador Leandro dos Santos, decidiu, por unanimidade, conceder medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Federação de Agricultura e Pecuária do Estado da Paraíba, para suspender quase uma centena e meia de dispositivos da Lei Estadual 11.140/2018, que instituiu o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba. Para uma análise aprofundada dessa decisão e suas circunstâncias, consultar o estudo por nós elaborado, disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/08/tjpb_suspende_parcialmente_o_codigo_de_d.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

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O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da CEDEF.

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